Rabo do Macaco

O Rabo do Macaco e outras Historias



Brasília - 2005


O Autor 

Carlos Aníbal Pyles Patto nasceu em Taubaté, estado de São Paulo, em 1946. Passou toda a infância e adolescência em Tremembé, cidade vizinha a Taubaté. Saiu de casa com dezoito anos, ao ingressar na carreira militar, durante a qual se deslocou por todo o território nacional e por diversos países estrangeiros.

Nessas andanças conheceu e casou-se com Maria Laura Santos Germano, gaúcha de Rio Grande. Tiveram dois filhos, Cláudio Eduardo Germano Patto e Sérgio Augusto Germano Patto, nascidos em Belém do Pará.

Em 1989 foi diagnosticado como tendo Parkinson, tendo passado pelas fases de negação, da revolta, da depressão e de aceitação da doença.

Atualmente, já aposentado, reside em Brasília com a mulher e com o filho mais novo e passa o tempo trabalhando no condomínio, escrevendo e fazendo pequenas esculturas em madeira e pedra-sabão.



Agradecimentos do Autor

Agradeço ao meu Anjo da Guarda que, conforme poderão constatar no decorrer da leitura, trabalhou muito para me proteger.



Apresentação

Houve uma ocasião que decidi fazer terapia, talvez por influência da Laura, minha mulher, que é psicóloga. Como não sabia o que apresentar, fiz uma lista dos eventos que considerava marcantes em minha vida. Isso me fez resgatar episódios de vida divertidos e interessantes, que passei a narrar para parentes e amigos, quando a ocasião era oportuna.

Recentemente uma amiga da Laura, que mora na França, esteve em Brasília e veio nos visitar. Conversando, contei-lhe algumas de minhas histórias, que lhe despertaram vivo interesse. Solicitou-me, então, que as escrevesse e enviasse para ela, para serem publicadas em um site de sua autoria.

Assim foi feito e as histórias se acumularam, resultando neste livro, de caráter auto-biográfico e contendo, na maioria dos relatos, fatos e episódios vivenciados por mim e que considerei como de interesse para outras pessoas.

Esses episódios estão organizados cronologicamente e por área geográfica, visando facilitar o entendimento.

Procurei, também, evitar os termos técnicos, o que nem sempre foi possível. Nesses casos, usei o recurso das notas de rodapé para esclarecer o significado.

Com essas palavras de apresentação convido a você, leitor, para percorrer e curtir essas páginas, esperando que sejam de seu agrado.

Carlos Aníbal Pyles Patto




Tremembé - SP



Infância

  

Passei a minha infância em um misto de ambiente urbano com ambiente rural.

Desde cedo demonstrei gostar de alturas. Havia uma árvore com muita erva de passarinho. Subia nela, deitava naquele colchão de ervas e ficava lá, de papo pro ar, olhando as nuvens.

Gostava, também, de me equilibrar. Não podia ver uma vala com uma prancha em cima – passava. Devagar, mas passava. Subia nas chaminés das fábricas e andava na borda. E, em dias de ventania, subia em um pé de eucalipto e ficava balançando no topo.

Também gostava de cavalos. Meu pai possuía alguns cavalos de raça, e eu costumava montá-los, em pêlo, sem sela e sem freio, apenas com uma corda passada sobre o focinho, como se fosse um cabresto. Certa vez, andando a galope, perdi o controle e a égua passou por dentro de um bambual. Ela passou... Eu não. Fiquei trançado nos bambus.

Era arteiro. Um dia, cortava algumas ramas de mandioca. O facão resvalou e decepou-me um dedo. Um tio, que era cirurgião, colocou-o no lugar.

Sempre gostei de armas. E de bombas. Fabriquei uma colocando carbureto e água dentro de um vidro. Tampei bem e joguei longe, aguardando estourar. Passou um tempo e, como não estourava, fui verificar. Foi levantar o vidro e ele estourou. Um pedaço bateu em minha costela e entrou por debaixo da pele. Saiu a caminho da farmácia.

Certo dia, meu pai chamou a mim e ao caseiro para prendermos a Vaca Preta no curral. Cerca daqui, cerca de lá, e a vaca, sentindo-se acuada, escolheu o setor mais fraco para escapar – o meu. Já ia “bater em retirada”, quando meu pai deu um de seus famosos berros. Em uma fração de segundo, olhei para a vaca, olhei para o meu pai e decidi – enfrentei a vaca.

Tive cinco irmãs. Como era o único varão, tinha um quarto só para mim. Minhas irmãs dormiam em outro. O meu quarto era cheio de atrativos. Havia cobras conservadas em álcool, criação de escorpiões, arco voltaico. Fiz uma demonstração do funcionamento do arco voltaico para uns amigos. Todos feriram a vista. Passamos dias sem poder enfrentar a luz do sol. Como minhas irmãs menores gostavam de mexer nas minhas coisas, liguei, com o auxílio de um transformador, uma armadilha na maçaneta. Era tocar e levar choque. Quem levou o choque foi a minha mãe.

Nunca gostei que prendessem passarinhos. Como minha mãe achava que eu deveria ter alguma educação musical, colocou-me para ter aulas de piano com uma tia. Lá, na varanda de sua casa, havia dezenas de gaiolas com passarinhos. Um dia em que não havia mais ninguém por perto, abri todas as gaiolas e nunca desconfiaram de mim.  Afinal, eu tinha a fama, perante as mães, de ser um menino educado, atencioso e gentil. Um exemplo para os seus filhos – que sabiam que eu aprontava. O curioso é que vários passarinhos, já acostumados com a gaiola, permaneceram nos arredores e foram facilmente recapturados.



Adolescência

Em outra ocasião, meu pai passou a andar de moto. Sempre que podia, eu a pegava, escondido, e saía a passear. Foi com ela que aprendi alguns dos princípios da física – como quando,  inadvertidamente, “levantei vôo” numa rampa natural, na subida da ponte do Rio Paraíba.

Gostava de trabalhar. Levantava cedo, às vezes ainda escuro, e ia tirar leite. Com duas vacas, tirava mais de trinta litros, em duas ordenhas: uma de manhã e outra à tarde. Seguia, depois, para uma leiteria, onde era entregador. Entregava leite até o meio dia, equilibrando uma caixa com dez litros sobre o guidom de uma bicicleta. Quando recebia meu pagamento, entregava todo o dinheiro para a minha mãe. Ela ficava emocionada. Depois, eu conseguia, aos poucos, mais do que havia dado.

Não tinha armas. Usava, escondido, as de meu pai – ou fabricava. Fiz uma garrucha que precisava de duas pessoas para atirar: uma apontava e o outra colocava fogo no estopim. Era difícil saber se acertara, pois produzia muita fumaça.

Também fabriquei, com a ajuda de um amigo, uma espingarda, um garruchão. Ainda bem que resolvemos estreá-la amarrando-a em um mourão e pondo fogo à distância, usando um bambu equipado com uma tocha na ponta. Arrebentou tudo: arma, mourão e bambu.

Cursava o ginasial. Havia um valentão que batia em todo o mundo. Um dia, já não sei por quê, arranjei uma encrenca com ele e combinamos brigar depois das aulas. Como nunca fui de briga, tinha certeza de que iria apanhar. Mas fui. Tinha que ir. Já prontos para a briga, o valentão disse-me:
–    Espere até eu tirar o relógio.
E, ato contínuo, deu-me um tapa na cara. Fiquei de tal forma indignado que avancei de guarda aberta, atraquei-me com ele e dei-lhe uma joelhada no estômago. O golpe foi tão certeiro que ele caiu de joelhos e não conseguiu levantar-se. Estava terminada a luta. Eu havia vencido o valentão. Mas o que eu não sabia é que eu herdara o título. Agora eu era o novo valentão. E a toda hora havia quem quisesse disputar o título.

Demorei a aprender a nadar.
Houve um dia que não consegui companhia e fui, sozinho, nadar no Paraíba. O rio estava cheio e, como eu nadava mal, a correnteza me levava e eu não conseguia voltar. Resolvi parar no pilar da ponte. Estava cheio de paus, galhos e folhas, mantidos pela força da água. Tentei agarrar-me aos paus, mas, como estavam soltos, afundei com eles num turbilhão. Lá embaixo, senti, tateando, a textura do concreto e subi por ele. Arrebentei as unhas e esfolei os dedos. Mas saí.

Tempos depois, nadando melhor, fui com três amigos tirar uma pessoa que estava com câimbras e pedia ajuda.  Era um sujeito grande, bem mais forte que nós. Ficamos com medo que nos agarrasse, mas ele garantiu que se deixaria levar. Agarrou, no entanto, o primeiro que se aproximou. Foi preciso ir ao fundo para ele largar. Resolvemos, então, que era necessário nocauteá-lo. Começamos a esmurrá-lo, mas ele não cooperava. Não desmaiava. E a situação estava ficando crítica. De repente, avistei um tronco de bananeira boiando próximo e o reboquei até o afogado – que, a essa altura, já não sabia se ficava desesperado ou furioso. Rebocamos, um pouco, o tronco de bananeira com o afogado e, assim que constatamos que poderia sair sozinho, saímos d’água e nos mandamos.

Tinha muitos amigos. Em especial, uns de uma mesma família, com os quais me identificava. Uma vez, a avó deles veio visitá-los e fizeram fila para pedir a bênção. Entrei na fila e tomei a bênção, quando chegou minha vez. A avó disse para a mãe de meus amigos: “Maria, estou ficando esquecida. Não me lembro do nome desse aí!”




Barbacena - MG



Chegada na Escola

Cheguei na Escola Preparatória de Cadetes do Ar à noite.

Apresentei-me no Portão da Guarda, e me arranjaram um lugar para dormir.

Já havia amanhecido quando acordei ao som de uma corneta – era o toque de alvorada. Vesti minha roupa, perguntei onde se tomava o café e segui a orientação.

Próximo ao local indicado, encontrei uma porção de jovens, todos enfileirados e com uma expressão assustada. Em volta, outros jovens com uma postura arrogante. Achei estranhos esses novos colegas.

Como ninguém me incomodou, passei direto e desci as escadas em direção ao refeitório.

Entrei numa fila, apanhei um prato de mingau, uma banana, uma caneca de café com leite e um pão com manteiga. Achei um lugar para sentar, em uma mesa de oito lugares onde havia seis “assustados”.

Nem bem havia sentado quando se aproximou um “empombado”. Não pediu licença e sentou-se ao meu lado. Já não gostei do cara. A seguir, ele descascou sua banana e – assombro – jogou a casca no meu prato de mingau. Ela mal havia tocado o prato, e eu já o estava esfregando na cara dele.

Foi um tumulto.

Apareceram dezenas de “empombados” a favor do mal-educado. Defendi-me com cadeiradas. Logo apareceu uma pessoa que, mais tarde, soube tratar-se do Oficial de Dia, e pôs fim ao imbróglio.
 


Cemitério da Boa Morte


Houve um ano, se não me engano 1966, em que o dia treze de agosto caiu em uma sexta-feira.

O mês de agosto, o dia treze e a sexta-feira eram considerados azarados. Por isso mesmo, aquela data era tida como sendo especialmente azarada, como se multiplicássemos as respectivas cargas de azar.

Travou-se uma discussão em que eu e mais dois colegas, o Mário Lúcio e o Costa Pinto, afirmávamos que isso era besteira, que azar não existia. Como não chegávamos a uma conclusão,
fizemos uma proposta: nós três iríamos ao cemitério da Igreja da Boa Morte, à meia-noite dessa data, para desafiar o azar. E, para provar que estivemos lá, traríamos alguns ossos,
uma cruz ou algo do gênero.

Do planejamento, passamos à ação. Na data prevista, pouco antes da meia-noite, saltamos o muro (era comum fugirmos à noite) e nos dirigimos para o cemitério. Ao chegarmos na esquina da igreja, discutimos quem de nós faria um reconhecimento.

Para continuar bancando o valente, prontifiquei-me. Havia um pátio à frente da igreja e uma portinha que estava aberta. Passei por ela e contornei o pátio, em direção ao cemitério. Cheguei à grade que o cercava, porém não tive coragem de pular.

A iluminação da rua já não alcançava aquela área, no entanto havia luar suficiente para distinguir as coisas. Aproximei-me da grade, estendi o braço e alcancei um copo-de-leite caído no
chão, pelo lado de dentro. Fiz o caminho de volta esforçando-me para não correr.

– Então? Como foi? – perguntaram.
– Foi tranqüilo. Entrei e apanhei esse copo-de-leite – menti.
Ao que Mario Lúcio retrucou:

– Agora, vamos todos.
Costa Pinto negou-se a entrar. Eu tinha que ir. E lá fomos nós dois.

Ao chegarmos na grade, Mário Lúcio perguntou:
– Como é que você entrou?
– Escalando essa pilha de tijolos – menti novamente, apontando para uma pilha de tijolos que estava encostada na grade. Com cuidado, conseguimos escalar os tijolos, saltamos a grade e começamos a andar, procurando o que levar. Já não pensávamos em ossos. Impossível consegui-los.

Foi então que avistei duas velas sobre uma tumba – uma em pé e a outra deitada. Peguei a que estava em pé e a entreguei ao Mário Lúcio. Essa saiu com facilidade. Fui então apanhar a outra. Puxei-a, mas não saiu. Fiz mais força... e nada. Nervoso, apoiei o pé na lateral da tumba e puxei com toda a força. E a tampa da tumba cedeu, vindo em minha direção!!! Dei um pinote e tratei de alcançar Mário Lúcio que já havia disparado em direção à grade. Saltamos a grade não sei como. A portinha... levamos no peito.

Costa Pinto, quando viu aquilo, desapareceu. Era corredor. Nunca o alcançaríamos.


Corremos mais um pouco e paramos para analisar o ocorrido. Concluímos que eu havia puxado alguma fenda ou saliência e, com o nervosismo, não percebi. Já mais calmos, prosseguimos rumo à Escola. Saltamos o muro em um dos locais que utilizávamos e fomos para o alojamento. Lá chegando, notamos que havia uma aglomeração bem no centro. Fomos verificar e constatamos ser o Costa Pinto. Estava deitado, com os olhos arregalados. Só dizia:
– Ah... Ah... Ah...



Guru do Mão-de-Onça

Mão-de-Onça tinha-me por seu guru. Estava sempre procurando conselho e fazia tudo que eu indicasse. Houve uma ocasião em que veio falar comigo, mas eu não estava com cabeça para dar conselhos.

Perguntou-me:
– Você acha que uma pessoa mais fraca pode bater em uma mais forte?
– Lógico, Mão-de-Onça. É tudo uma questão de cabeça, de acreditar, de ter fé. E lá se foi ele, satisfeito.

Não demorou muito e ouvi um barulho forte vindo do fundo do alojamento. Todos corriam para lá. Fui verificar e cruzei com o Mão-de-Onça, todo sorridente, fazendo-me o sinal de positivo.

Logo soube do ocorrido. O Rangel havia dado uns cascudos no Mão-de-Onça, que, depois de falar comigo, dirigiu-se ao armário do Rangel, ganhou velocidade e jogou os dois pés contra a porta do armário, encaçapando o Rangel lá dentro, desmaiado.

Quando acordou, deu o troco no Mão-de-Onça.



Mão de Merda

Mão-de-Onça estudava na sala de aula até bem tarde.

Quando voltava ao alojamento para dormir, procurava a chave do armário, embaixo do capacete (os capacetes ficavam sobre os armários). Levantava o capacete e tateava, ou melhor, batia com as mãos à procura da chave. Com o
barulho, acordava aqueles que dormiam nos arredores.

Várias vezes, pediram que parasse com isso, que não fizesse barulho. Não adiantou. Continuava.

Para resolver o problema, um dos incomodados colocou,
sob o capacete, um troço fresco. E o desfecho foi o esperado. O Mão-de-Onça chegou, levantou o capacete, bateu... E ficou com a mão cheia de merda.

E ficou bravo. Acordou quase todo o alojamento.



Balalaica

Ia haver uma demonstração e praticávamos balalaica na Praça de Esportes da Escola Preparatória de Cadetes do Ar.

Acima de nós, entre a Escola e a Praça de Esportes, passava a estrada de ferro. Uma locomotiva fazia manobras, o que era comum. De repente, um de nós gritou:

– Olhem aquela menina! Ela está na linha do trem, e a locomotiva vem vindo.
Paramos a balalaica e começamos a berrar e a gesticular.

Não adiantou. Ela não entendeu, e a locomotiva pegou-a em cheio. Corremos para lá, com alguma esperança, mas só encontramos pedaços triturados e um cheiro característico de carne macerada.

No almoço, todos ainda estavam abalados com a morte da guria. Então, um dos colegas que havia assistido ao acidente fez um infeliz comentário:

– O que lembra o cheiro desse picadinho de carne?

Houve quem vomitasse.



O Material da Clarabela

Estávamos em uma aula prática de Biologia, com a professora Clarabela. Como explicava o processo da fecundação humana, comentou que, infelizmente, não dispúnhamos de material para observarmos o processo pelo microscópio.

Nesse momento, um colega pediu licença para ir ao banheiro, voltando com a mão cheia:

– Pronto professora. Eis aqui o seu material.
 

Juiz de Briga


Quase todo dia havia alguma briga. Eram marcados: local, hora e juiz de briga.

O local era, geralmente, atrás do almoxarifado e o juiz de briga, um aluno convidado para assistir a briga e apartar, quando necessário. Eu era escolhido com freqüência para essa função.

Deixava se estapearem um pouco e apartava, tentando fazer que considerassem empate.



Cachorrada

Havia um colega que detestava cachorros.

Outro, valendo-se disso, colheu um pouco da secreção da genitália de uma cadela no cio e aplicou no sapato do primeiro. Por onde ele andava, ia uma cachorrada atrás.

E ele não entendia nada!



Exame de Fezes

Havíamos recebido uma latinha para colher fezes destinadas a serem examinadas.

Como alguns não estavam com vontade de defecar, colocaram fezes de cachorro nas latinhas.

Deu merda.




Rio de Janeiro - RJ


Lutando Caratê

Já nos Afonsos, no Rio de Janeiro, como aluno do terceiro ano da Preparatória, senti necessidade de praticar uma luta e minha preferência era o caratê – modalidade que não havia na Escola de Aeronáutica.

Solicitei e me concederam licença para treinar toda noite, em uma academia, em Madureira. Lá, fiz amizade com um carateca. Ao término da aula, costumávamos descer para tomar uma vitamina. Nessas ocasiões, meu amigo
provocava as pessoas que estavam por ali.

Perguntei-lhe por que procedia dessa forma, e ele me respondeu:

– Lá em cima é a teoria; aqui, a prática.



Outra do Mão-de-Onça

Estava no Campo dos Afonsos, cursando o terceiro ano da Preparatória.

Vieram me falar que o Mão-de-Onça havia perseguido o cadete de dia com uma faca na mão e que se encontrava baixado à enfermaria.

Fui até lá para ver como ele estava. Notei que vários baixados estavam saindo, assustados. Entrei e deparei-me com o Mão-de-Onça, com um bibico atravessado na cabeça, uma mão no peito, enfiada no camisolão, e a outra mão às costas. Rindo, me dizia:

– Estou fingindo que sou Napoleão, e eles pensam que eu sou doido.

– O que você tem na outra mão? – perguntei.

– Não é nada, não.

– Mão-de-Onça, mostra a outra mão.

Tanto insisti que mostrou. Tinha uma faca na outra mão.



Torcida

A sirene que anunciava um pouso de emergência tocou no intervalo das aulas.

Saímos todos em direção ao pátio de estacionamento, para assistir ao pouso. Fiquei bem próximo a uma equipe de televisão que fazia uma reportagem e escutei a repórter comentar com o “câmera”:

- Que emocionante! Todos correndo ansiosos, preocupados com os colegas em emergência...

Quando, na realidade, nossos comentários, nessas ocasiões, eram do tipo:

- Desta vez explode!
- Ou, pelo menos, pega fogo!



Acampamento

Estava prevista a realização de um acampamento no próprio Campo dos Afonsos em que participariam a minha turma e a outra logo acima.

Os cadetes seriam divididos em dois grupos: um que comporia e defenderia o acampamento, e outro – o dos guerrilheiros – que atacaria o acampamento. Eu pertencia aos que defenderiam o acampamento.

Entusiasmei-me com o exercício. Andava de um posto para outro, fiscalizava tudo, bolava táticas e estratégias. Como sempre concordei com o adágio de que a melhor defesa é o ataque, sugeri aos outros passarmos à ofensiva.

O acampamento ficava numa elevação, e metade de seu perímetro era barranco, o que se constituía numa proteção natural. O restante era mais vulnerável e, fatalmente, propiciaria o acesso dos guerrilheiros. Daí a importância de
partirmos para a ofensiva.

Tracei o seguinte plano: sabíamos que os guerrilheiros estavam rastejando lá em baixo, em direção ao acampamento. A noite era escura e não era possível avistá-los a olho nu. Dispúnhamos, no entanto, de uma pistola de sinalização e de alguns cartuchos. Combinamos, então, que formaríamos uma fileira lá embaixo e que sairíamos correndo em frente e berrando. Nesse momento, um dos nossos, posicionado no morro, lançaria, em seqüência, uns três tiros com os sinalizadores. Acreditávamos que os guerrilheiros se julgariam descobertos e se levantariam para fugir, dando-nos a oportunidade de apanhá-los. Era a “Operação Levanta Perdizes”. Assim fizemos, e foi um sucesso. Várias “perdizes” tentaram levantar vôo.

Ainda nessa noite, foram me chamar para ir a um determinado posto, na beira do barranco. Lá chegando, encontrei vários cadetes debruçados no barranco, discutindo.

Perguntei do que se tratava.

– É esse vulto ali embaixo, colado no barranco. Não sabemos se é pedra ou guerrilheiro. Ao que respondi:

– Não tem problema. Quem está com vontade de mijar?

Apresentaram-se vários voluntários. Chamei o mais próximo e disse:

– Mija na pedra.

E lá se foi a primeira mijada. E a pedra não se mexia. Chamei o próximo.

– Mija na pedra.

E nada. A pedra continuava imóvel. Chamei o terceiro e repeti:

– Mija na pedra.

Dessa vez, a “pedra” não agüentou. Levantou-se, xingou a mãe de todo mundo, ameaçou dar porrada... Era o Japonês.

Agüentou três mijadas.



Goteira

Chovia muito no Campo dos Afonsos. E havia muito pernilongo. O Japonês era o único a possuir mosquiteiro, em todo o alojamento. Era daquele tipo quadrangular, armado sobre a cama.

Depois que o Japonês dormiu, um outro colega foi até lá e colocou uma pedra de gelo sobre o mosquiteiro, à altura da cabeça. O gelo derretia e pingava no rosto do Japonês.

Esse acordava e, julgando ser uma goteira, arrastava a cama para outra posição. Voltava a deitar, a “goteira” continuava, e a cama era arrastada – até derreter todo o gelo.
 

Tirando Férias 

 

Transcorria o ano de 1968. Eu estava conflitado, não sabia se continuava na Academia, nem o que fazer da vida.

Resolvi que precisava de umas férias para pôr a cabeça no lugar e, como a tirada e o processamento das faltas estavam atrasados, demorariam a descobrir.

Assim fiz.

Levantava todos os dias, colocava a farda, ia para o rancho tomar café, voltava, colocava o uniforme de Educação Física e ia para a quadra de esportes ou para a piscina. Na hora do almoço e do jantar, eu repetia o processo. Fiz isso por um mês. Ninguém me incomodou durante esse período.

Passados uns quinze dias do término das “férias”, fui chamado para justificar as faltas. O tenente chefe da esquadrilha começou a ler as fichas de controle:

– Faltou à aula de Resistência dos Materiais do dia tal; faltou à aula de...

Interrompendo, eu disse:

– Pode parar, tenente. Foram trinta dias de faltas.
– O que houve, Patto? Esteve baixado ao hospital?
– Não, senhor. Estava estressado e resolvi tirar umas férias.
– Como é?!
– Sim, senhor. Passei trinta dias sem assistir às aulas. Ficava na praça de esportes ou na piscina.
– Um momento – disse o tenente.

E foi conversar com um colega meu que estava um pouco afastado, voltando logo a seguir.

– Olhe, não sei o que faço com você. Seu colega garantiu que você não é louco, mas tenho minhas dúvidas. Vou lhe dar quatro dias de detenção e ficar de olho em você. Qualquer alteração e você estará a caminho da rua.

Saiu barato.

É como dizem: “não há crime de exceção”.
 


Aproximação Solo 

 

Corria o segundo ano de cadetes na Escola de Aeronáutica. Recebi o briefing1 de meu instrutor de vôo e seguimos até o avião, um Fokker T-21, monomotor de treinamento básico.

A missão consistia em um vôo solo de aproximação2. O instrutor permanecia no solo, na cabeceira da pista, e o aluno decolava e fazia aproximações de noventa, cento e oitenta e trezentos e sessenta graus. O instrutor avaliava cada aproximação.

Dei a partida e taxiei até a cabeceira. Ali o instrutor desceu, com algumas almofadas. Havíamos combinado alguns códigos sinalizados com as almofadas.

Em seguida, tomei posição e decolei para a primeira aproximação.

Saiu perfeita. Toquei logo na cabeceira. Mas, para meu espanto, o tenente estava dormindo ao lado da cabeceira, deitado sobre as almofadas.

Bateu o conflito. Como eu seria avaliado se ele continuasse dormindo?

Resolvi que teria que acordá-lo. E teria que ser com o avião.

Fiz a outra aproximação como previsto, mas bem próxima ao tenente. Ao tocar, dei todo o motor para fazer barulho, na esperança de acordá-lo. Mas nada. Continuava dormindo.

O pouso seguinte foi radical. Levei o avião a tocar a roda esquerda a uns dois ou três palmos do dorminhoco. E vim dando rajadas de motor. Dessa vez, deu certo. Lá de cima, depois de fazer a volta, era possível enxergá-lo pulando e gesticulando. Mas não fazia nenhum dos sinais que havíamos combinado.

1 Termo em inglês. Significa instrução ou orientação para executar um procedimento ou ação.
2 Manobra que consiste em “tirar o motor” (desacelerar o avião) em posições preestabelecidas em relação ao local de pouso. Destina-se ao treinamento para pouso em emergência.



Aula de Resistência de Materiais

 



Havia um major, no Campo dos Afonsos, que nos dava aulas de Resistência dos Materiais.

Em uma de suas aulas, eu me distraía lendo o livro de História, quando, interrompendo a aula, veio falar comigo.

– Patto, você não devia estudar outra matéria em minha aula. Mesmo que você já esteja com nota suficiente para passar na matéria, prestando atenção à aula você vai tirar uma nota maior e isso vai melhorar a sua classificação. Eu sei que vocês não se preocupam com a classificação hoje, mas, amanhã,
vão sentir falta...

– Eu não tenho esse problema – argumentei.
– Por que não?
– Porque me considero o primeiro colocado da turma que vem a seguir.

Todos riram, menos o major. Resolvi, então, colocar uns panos quentes, antes que me desse mal.

– Mas faço um acordo com o senhor: eu tiro a melhor nota na próxima prova, e o senhor deixa-me ler o que eu quiser.

– Feito.

E voltou a dar a aula.

Em conseqüência, parei de estudar tudo o mais. Só estudava Resistência dos Materiais. Tirei a maior nota de toda a turma. E a prova foi de lascar. O major ficou supersatisfeito.

Cumprimentou-me, elogiou-me, disse que eu podia fazer o que quisesse na sua aula...

Mas é lógico que parei de estudar aquela matéria e tratei de me recuperar nas outras. E, na prova seguinte de Resistência de Materiais, tirei zero.

O major nunca mais falou comigo.



Anti-herói

Eu estava na praia, na Barra da Tijuca.

O mar estava puxando, e a bandeira vermelha estava hasteada.

De repente, todos começaram a apontar para o mar. Olhei na mesma direção e vi uma pessoa nadando ao longe, aparentando estar com problemas. Olhei para todos os lados e nada. Não havia salva-vidas, ninguém se movimentava para ajudar.

Fiquei indignado. E, sem mais pensar, entrei n’água e comecei a nadar, decidido a socorrer aquela pessoa.

À medida que avançava, as ondas ficavam maiores. Ora eu estava no topo da onda, ora lá embaixo. Logo perdi de vista o afogado. Foi quando olhei para a praia e constatei que me afastara demais e comecei a nadar de volta. Havia uma corrente que me desviava de onde havia saído. Avançava pouco, o que me obrigou a um maior esforço. Nesse ínterim, avistei vários salva-vidas, unidos por uma corda, entrando no mar em um ponto distante, alcançando o afogado e tirando-o d’água. E vi todos na praia olhando para mim, inclusive os salva-vidas. Agora, eu era o afogado.

A muito custo, consegui alcançar a praia... e um salvavidas me ajudou a sair d’água.



Calota

Um colega foi de Chevete assistir a um jogo no Maracanã.

Enquanto estacionava, aproximou-se um “flanelinha” e perguntou:

– Vai um polimento aí, doutor?

E meu colega, depois de olhar para um lado e para o outro, respondeu:

– Não. Mas você está vendo aquela roda dianteira, do lado esquerdo, sem calota?

– Estou sim.

– Pois quando eu voltar, se estiver com uma calota igual às outras, você leva uma boa gorjeta.

E o “flanelinha”:

– Deixa comigo, doutor.

Ao retornar do jogo, meu colega constatou que a roda estava com uma calota.

Satisfeito, deu uma boa gorjeta para o “flanelinha” e foi para casa.

Lá chegando, desceu do carro, deu a volta para abrir o portão e, com surpresa, constatou que faltava uma calota do outro lado.



Pega

Somente um dos meus colegas de turma tinha carro novo.

Era um Fuscão todo incrementado: tinha kadron, suspensão rebaixada, tudo...

Certo dia, andava pelo Rio, quando um sinal fechou, e ele avançou um pouco a faixa. Engatou a ré e chegou o carro para trás.

Nesse momento, parou, bem ao seu lado, um “boyzinho”, acelerando para um “pega”. Meu colega aceitou o desafio e passou, também, a acelerar.

Acelera daqui, acelera de lá, e eis que abre o sinal.

Arrancaram ambos a toda velocidade – o “boyzinho” para a frente, e meu colega batendo no carro de trás.

Havia esquecido de tirar a marcha à ré.



Pirassununga - SP


Solo em Avião a Jato 


Já estava na Academia da Força Aérea.

Taxiava para a cabeceira da pista com o T-37, um jatinho de treinamento avançado para os cadetes aviadores do último ano. Faria meu primeiro vôo solo, no tráfego. O vôo consistia em cinco toques e arremetidas.

O esquema de segurança era pesado. Havia um instrutor na torre de controle, um na cabeceira da pista, numa Kombi que tinha uma bolha em cima e comunicação com os aviões, e mais um instrutor voando no tráfego, juntamente com os outros três cadetes solos.

Quando autorizado, entrei na pista, tomei posição para decolagem e, ao ser liberado, dei cem por cento de potência e disparei pista afora. Ao atingir a velocidade prevista, tirei o avião do solo, recolhi o trem de pouso e desci, acelerando cada vez mais. Voava tão baixo que alguns colegas que assistiam do pátio me disseram que eu quase sumia, tapado pela grama alta. Ao final da pista, dava uma puxada
no manche, observando o avião à frente e, num relance, já me encontrava na “perna com o vento”1. Foi então que o instrutor que estava na cabeceira da pista entrou na freqüência e disse:

– Patto, não foi isso que combinamos no briefing. Não faça mais isso.

Mas ele falou de uma forma tão gentil e educada que pensei que estava gostando. E continuei repetindo aquilo que chamávamos de “americana”.

Quando terminou o vôo, todos os instrutores estavam furiosos comigo. Uns queriam me bater, outros prender e alguns queriam me levar a Conselho.

Felizmente, com o decorrer dos dias, os ânimos se acalmaram. Não sei se fui a Conselho, mas se fui, passei. Tanto é que estou aqui – já aposentado.
 

Sobrevivência no Xingu



 Ainda como cadetes, fomos realizar um curso de sobrevivência na selva, ministrado pelo Parasar. O curso seria prático, às margens dos rios Ronuro e Kolueno, formadores do Xingu. Fomos de avião até o Posto Leonardo Villas Boas e, de lá, prosseguimos de lancha.

Já no primeiro dia, nosso grupo deu uma bobeada. Passamos o dia limpando a área e fazendo a barraca com lona de pára-quedas e não designamos ninguém para providenciar comida. Já estávamos no pôr-do-sol, quando um tucano, inadvertidamente, pousou bem acima de nossas cabeças.

Saquei a pistola quarenta e cinco e, com sinais, pedi silêncio. Fiz pontaria e atirei. O tucano caiu num rodopio. Mistério! Não estava ferido!

A partir de então, fui designado caçador do grupo.

Mas tucano só tem bico... e penas. Depois de limpo, tinha o corpo de um passarinho. Mesmo assim, foi para a panela. Deu um pedacinho para cada um, que foi comido com ossos e tudo.

O exercício durou cinco dias, como previsto. Voltamos para o Posto Leonardo e ficamos aguardando o avião que os levaria de volta para a Academia.

Enquanto isso conversava com um índio Yualapiti. Era um índio forte, bem maior que qualquer um de nós. Como eu era bom de braço-de-ferro – ninguém me ganhava na Academia –, o pessoal queria que eu jogasse com o índio. Expliquei para ele como era, e jogamos. Não era de nada. Ganhei fácil. A pressão, agora, era para jogar dedo. Eu não queria, pois esse jogo pode quebrar o dedo. Mas tanto insistiram que resolvi jogar. Expliquei ao índio, com detalhes,
como era o jogo, e o avisei:

– Se eu falar para parar, pare. Esse jogo quebra o dedo. Entrelaçamos os dedos e apertei bastante.
O índio não apertou e torceu a mão.

Deu para ouvir o estalo. O dedo dele quase que fica em minha mão. Queríamos levá-lo para nosso médico, mas ele não quis. Sem mudar de expressão, colocou o osso no lugar e ficou massageando, enquanto o dedo inchava. Perguntei-lhe como faria, e ele me explicou:

– Fico raspando por vários dias (não me lembro quantos), com dentes de piranha, e pronto. Fica bom.
A técnica consistia em manter o inchaço, que servia de gesso.

Perguntei-lhe se faziam assim para qualquer osso quebrado e me explicou que servia para vários. Alguns eram mais difíceis, como os ossos da clavícula. Outros, como os da coluna, não tinham solução. Quebrou, morreu.



Alvorada

Todos os dias acordávamos ao som do toque de alvorada. Logo a seguir, o cadete de dia colocava para tocar um disco de sua preferência (havia um sistema de avisos e música ambiente nos apartamentos).

E todos os dias tocavam a mesma música: “Meu violão caiu de cima do armário...”. E todos os dias era aquela gritaria:

– Arrego aí ô...
– Desliga essa...
– Enfia...

Até que um dia, um cadete mais irritado desceu até a Sala do cadete de dia e, usando a própria agulha do tocadisco, arranhou todo o disco.

No dia seguinte, logo após o toque de alvorada, começou a música: “Meu violão... crik... de cima... cruoque... armário... crunch...



Orientação Noturna

Realizávamos um exercício de orientação noturna em um bosque localizado dentro da própria Academia.

Eram vários grupos, cada um identificado por uma cor. O exercício consistia em localizar, com o auxílio de uma bússola e de uma lanterna, uma primeira placa de sinalização, colorida, posicionada a uma determinada distância e num determinado rumo. Nessa placa, havia o rumo e a distância para a próxima, e assim por diante.

Como o nosso grupo não encontrou a primeira placa, passamos a andar rápido, em qualquer direção, recolhendo todas as placas que encontrávamos.

Foi uma confusão.

Ninguém conseguia encontrar o caminho.



Canoas - RS


Comemoração

Era dia de festa.

Íamos comemorar o milésimo pouso de instrução sem nenhum acidente.

O evento ocorreria no 1º Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque, sediado na Base Aérea de Canoas, no Rio Grande do Sul, onde eu fazia estágio de piloto de ataque. Voávamos o NA T-6, um avião em “tandem”1, monomotor, à época utilizado como avião de ataque ao solo.

Estava tudo preparado. A banda já estava a postos, os salgadinhos já estavam à mesa, e o comandante da base já se encontrava no pátio de manobras, onde seria realizada a cerimônia.

Eu estava voando. Recebi a incumbência de permanecer no tráfego e realizar quatro pousos, em “toque e arremetida”2, para que um outro colega realizasse o milésimo pouso.

Fiz o primeiro pouso sem utilizar “flaps”3 e arremeti; fiz o segundo com flaps, arremeti e recolhi os flaps após a decolagem; entrei na final para realizar o terceiro pouso e, para variar, resolvi fazê-lo com flaps e recolhê-los durante a arremetida (o que era proibido aos estagiários, pela pouca experiência, pois havia uma tendência a olhar para dentro, o que, normalmente, resultava na perda de controle da aeronave).

Assim planejei e assim fiz. E não deu outra. Perdi o controle da aeronave, saí da pista e fui parar dentro de uma vala de drenagem, com o avião pilonado4. Sempre de prontidão, logo estavam, ao meu lado, o carro dos bombeiros e a ambulância. Como eu estava bem, levaram-me para o local da cerimônia, onde, logo em seguida, a banda começou a tocar. Meu colega havia completado o milésimo pouso de instrução. O comandante da base foi ao microfone e anunciou:

– Comemoramos hoje o milésimo pouso de instrução do 1º EMRA e o primeiro acidente. Aspirante Patto venha cá.

E lá fui eu, envergonhado, para aquele palanque improvisado.

1 Outra palavra em inglês. Na aviação significa “avião de dois lugares, sendo um atrás do outro.”
2 Pousa, mas não pára o avião. Acelera o motor e decola novamente.
3 Extensão da asa que propicia um aumento de sustentação.
4 De ponta-cabeça, apoiado na hélice e nas rodas do trem de pouso.



Incidente no Trânsito

Caía uma chuva fina sobre Porto Alegre.

Naquela época, o calçamento das ruas do centro era de pedras polidas, muito escorregadias quando molhadas.

Éramos aspirantes. O Pontes, andando pelo centro com seu Karmann Ghya, sem saber que o calçamento estava escorregadio, freou um pouco em cima, deslizou e bateu no carro da frente. Desceu para conversar com o motorista, que aparentava estar furioso:

– Olha o que você fez. Não sabe dirigir?

Ao que o Pontes respondeu:

– Calma. Se houver algum estrago, eu pago.
– Calma coisa alguma. Pessoas como você não deveriam dirigir...

Perdendo a paciência, o Pontes retrucou:

– Quer saber de uma coisa? Se não quer conversar, então vá à merda.
– O quê? Sabe com quem está falando? – retrucou o outro.
– Não – respondeu o Pontes.
– Pois saiba que eu sou capitão da Polícia Militar.
Ao que o Pontes prontamente respondeu:
– Bem feito. Quem mandou não estudar?



Acidente em São Jerônimo




 

Estávamos no fim do ano. A pilonagem havia sido esquecida, e todos já haviam acumulado experiência.

Minha função era coordenar a construção da nova pista, em São Jerônimo, em terras do Exército, onde tínhamos um stand de tiro aéreo.

Como sempre, decolei de Canoas e rumei para São Jerônimo.

A pista em uso era crítica. Era de cascalho, tinha seiscentos metros de comprimento, uma cerca de arame farpado em uma cabeceira, uma depressão na outra e uma ribanceira num dos lados.

Havia, também, um tambor posicionado a dois terços do comprimento da pista, destinado a marcar o ponto limite para arremeter, no caso de não estar com o avião dominado e com a bequilha1 no chão. O vento estava forte, de través. Entrei alto na final, o que me custaria alguns metros a mais de corrida pós-pouso.

Ao chegar no tambor, ainda estava com a bequilha no ar, mas não arremeti (afinal, eu era um dos poucos que nunca havia arremetido nessa pista). Em conseqüência, precisei frear muito. Derrapei no cascalho, e o avião saiu da pista, descendo a ribanceira. Voltei a dar motor e colei o manche para evitar uma pilonagem. Pretendia parar o avião no pasto, logo abaixo. Entretanto, eu não sabia que ali era um charco, camuflado pela vegetação. Ao atingir o charco, o avião capotou. Não me recordo da pancada. Devo ter desmaiado por algum tempo. Quando acordei, estava de cabeça para baixo, a cadeira estava quebrada na base, o capacete estava rachado devido à pancada no painel, eu estava com o topo da cabeça dentro d’água (um olho estava dentro d’água) e com os braços presos, imobilizados.

Havia cheiro de gasolina e dava para ver a “luz da bruxa”2 acesa. No início, desesperei-me. Fazia força para soltar os braços, tentava erguer o avião.

Aos poucos, consegui me acalmar. Foi então que percebi que um braço podia movimentar-se para frente. Foi só esticá-lo, dar uma torção, e ele estava livre. Num instante, soltei o outro, livrei-me do pára-quedas e passei a apalpar a fuselagem, com a faca na outra mão, procurando um local para romper a lataria. A impressão que eu tinha era de que a aeronave estava parcialmente enterrada no charco, e que o único meio de sair era rompendo a fuselagem. Foi então que ouvi passos.

Perguntei:

– Tem alguém aí?

E alguém respondeu.

Voltei a perguntar:

– Está com alguma ferramenta?

E a pessoa informou que estava com uma enxada.

– Cutuca com a enxada por aqui para eu ver se entra luz
– e batia na chapa da fuselagem. Na primeira enxadada, apareceu luz. Em segundos, eu cavei uma saída com as mãos.

Antes de sair, enterrei minha faca no barro pensando em não me machucar. Mais tarde a encontraram a mais de meio metro de profundidade.

Dirigi-me à sede do stand. Lá chegando, encontrei o suboficial encarregado que regressava da estação do Exército. Havia escutado o barulho do avião pousando e foi até a pista. Ao ver o avião naquele estado, chamou e não obteve resposta. Pensou que eu estivesse morto e foi até a estação de rádio do Exército, para informar à base. Rascunhei, então, um rádio, nos seguintes termos: “Acidente grave 1244. Perda material total”. Ocorre que o suboficial havia informado “... perda total...”. Como a mensagem passava por vários pontos, minha mensagem chegou antes e a do suboficial após, o que confirmou a minha morte.

Assim, foram desencadeados, na base aérea, os procedimentos previstos para acidentes com morte: lacraram meu armário; mandaram avisar a Laura (minha futura mulher); solicitaram à Escola de Sargentos de Guaratinguetá que enviasse o capelão para avisar os meus pais, em Tremembé; compraram meu caixão e prepararam um C-47 para buscar meu corpo. Enquanto isso, eu tomei um banho, coloquei meu macacão para secar e aguardei. Já mais calmo, perguntei ao suboficial:

– E aquela caipirinha que vocês fazem para o almoço?

Ao que ele respondeu:

– Mas, tenente, o senhor tomou toda a caipirinha!

E eu pensava que havia tomado um copo duplo de limonada!!

E a caipirinha não fez o mínimo efeito.

Como pensavam que eu havia morrido, o C-47 demorou um pouco. Deu tempo de secar, parcialmente, o macacão. Mas eu ainda estava com um calção emprestado, quando o avião pousou. Fui até o pátio recebê-lo. Dentro do avião, um de meus companheiros reconheceu-me pela janela e exclamou:

– Olha o Patto ali.

Mas lá havia muitos patos. Pensaram que ele estava fazendo trocadilho e quase lhe bateram. Só quando desembarcaram é que o mal-entendido foi desfeito. O Comandante do C-47 mandou o rádiotelegrafista passar uma mensagem em morse, avisando que eu estava vivo e bem.

Nesse ínterim, o comandante da base em exercício (o titular estava de férias) foi chamado à Sala de Meios, encarregada das comunicações, e tomou conhecimento da situação. Saiu em seguida para desfazer todas as providências em andamento. Mas ele gaguejava, quando ficava nervoso. Naquele momento, estavam entrando no prédio de comando com meu caixão. Segundo dizem, gaguejou como nunca havia gaguejado antes.

Houve tempo para cancelar a ida do capelão que avisaria os meus pais e, também, o pai da Laura. Como ela estava na faculdade, não chegou a ser informada de minha morte.

De regresso, o C-47 pousou no V Comando Aéreo Regional, para me deixar no hospital.

Era um procedimento de rotina – ficar um período em observação.

Havia uma enfermeira que me conhecia e estava desolada com minha morte. Ao me avistar, ficou alegre:

– Pensei que fosse o senhor que houvesse morrido.

Ao que respondi:

– Fui eu, sim!

Enquanto esses acontecimentos se sucediam, um outro colega, sediado na Base Aérea de Santa Maria, passou pela Base Aérea de Canoas com destino a São Paulo ou Rio de Janeiro. Ficou sabendo de minha morte e foi espalhando a notícia.

No regresso, alguns dias após, pernoitou na Base Aérea de Canoas, devido ao avançado da hora. Dirigiu-se ao alojamento, abriu a porta de meu quarto (estava frio e eu estava coberto, só com a cabeça de fora) e perguntou:

– O Vaca está?

– Não – respondi.

– Obrigado.

E fechou a porta. Mas a maçaneta permaneceu abaixada.

E a porta foi abrindo devagar.

Eu me preparei, colocando a cabeça bem para fora das cobertas.

Com os olhos arregalados, olhou novamente para mim e exclamou:

– O Patto!!!

Quando fui transferido da Amazônia para Brasília, costumava contar histórias de caçador e de pescador no ônibus que nos levava para o trabalho.

Quando acabou meu estoque amazônico e me perguntaram qual ia ser a história do dia, eu respondi:

– Hoje eu vou contar uma história diferente, em que eu morro no final.

Não me deixaram contar.

E era a única verdadeira.

1 Nessa aeronave, roda pequena posicionada na sua parte traseira.
2 Lâmpada no painel que indica baixo nível de combustível.



De Pijama no Casamento

Havia um aspirante da reserva fazendo o Curso de Ataque conosco, em Canoas. Não tinha aquela malícia adquirida na Escola Preparatória, na Escola de Aeronáutica e na Academia da Força Aérea.

Na véspera de meu casamento, estavam todos os meus colegas e instrutores combinando o que fariam no dia seguinte. Entre outras coisas, combinaram ir de pijama para a igreja.

No dia seguinte, lá estava o mencionado aspirante, à espera de uma carona. Notou que, dentre os presentes, só ele estava de pijama. Os demais estavam com o quinto uniforme, adequado para essas ocasiões. Explicaram para ele que aqueles que ali estavam iam cruzar as espadas e que os demais iriam de pijama. Deram-lhe uma carona até a igreja e, somente quando chegou lá, percebeu o logro. Ninguém se prontificou a levá-lo de volta. E só lhe emprestaram o suficiente para voltar de ônibus.



Comprando Cachimbo

Andava no centro de Canoas quando vi, em uma vitrine, um paletó que me agradava, com um cachimbo no bolso. E o cachimbo me agradava mais ainda. Entrei e pedi para experimentar o paletó, que me serviu perfeitamente.

Resolvi comprá-lo e pedi à vendedora que o embrulhasse.

– E não se esqueça do cachimbo – comentei.

– Mas o cachimbo não está à venda. É só um enfeite – replicou.

– Nada feito. Estavam na vitrine paletó e cachimbo. Ou levo os dois ou não levo nada.

– Aguarde um momento que vou consultar o dono da loja.

E voltou logo a seguir.

– Tudo bem. O senhor pode levar o cachimbo. Vou embrulhá-lo juntamente com o paletó.

Saí da loja todo satisfeito. Estava querendo mesmo fumar cachimbo.

Mas ao chegar na base e desembrulhar o pacote, constatei que o cachimbo não tinha furo, não funcionava. Era enfeite mesmo.



Primeira Discussão

Com pouco tempo de casados, tivemos nossa primeira discussão. E ela foi crescendo, ficando acalorada.

Em um dado momento ameacei, ríspido:

– Cale a boca, senão...

E a Laura, pondo a mão na cintura:

– Senão o quê?

– Senão calo eu – respondi.

Foi nossa primeira e última discussão.



O Jogo dos Três Copinhos

Ainda era aspirante a oficial.

Passeava por Canoas, quando deparei com dois indivíduos jogando alguma coisa em cima de um caixote.

Fui ver de que se tratava.

Havia três copinhos e uma bolinha. A “banca” colocava um dos copinhos sobre a bolinha e manipulava os copos, mudando suas posições. Invariavelmente, o outro sujeito errava. Invariavelmente, eu sabia onde estava a bolinha. Resolvi apostar.

E, invariavelmente, passei a perder.

De repente, percebi que estava sendo enganado. Saquei o 38 e fiz os dois marcharem, de pernas abertas, até a delegacia.

Coisa de aspirante – à época.



Ultrapassagem

Fui com alguns colegas ao casamento de um outro, em uma cidade ao norte do Paraná.

Estávamos em quatro e viajávamos em um Fuscão emprestado. Naquele momento, eu dirigia.

Estava difícil ultrapassar uma carreta à minha frente. O Fuscão não tinha potência e, nas descidas, a carreta acelerava ainda mais.

Numa daquelas descidas, mais acentuada que as anteriores, resolvi ultrapassar. Acelerei tudo que podia, emparelhei com a carreta e fui avançando devagar.

Foi quando surgiu, lá à frente, uma outra carreta, também na descida. Achei que conseguiria e continuei a acelerar.

Logo ficou patente que não daria para ultrapassar.

Voltar era impossível.

Sem alternativa, continuei acelerando e cheguei o mais para a direita que me foi possível, esperando que a estrada comportasse os três.

Não comportou.

A carreta, à minha frente, tirou uma roda para fora da estrada e, entre buzinadas, freadas e poeirada, passamos os três.

Só então me dei conta de estar sozinho à frente. O companheiro que estava no banco ao lado havia sumido. Na confusão, havia pulado para o banco de trás.

Paramos para respirar e para desabafar.

Desabafaram inclusive na minha mãe, que não tinha nada a ver com isso.



Amazônia


Severino, um Brasileiro

Houve uma época em que participei do projeto Radam, destinado a levantar o potencial da Amazônia nos aspectos de extração de madeiras, fertilidade do solo e presença de minérios. Consistia em levar, de helicóptero, uma equipe de quatro homens para descerem de rapel1 na selva, em pontos predeterminados, com a finalidade de abrir uma clareira que permitisse o pouso do helicóptero. Deixávamos a equipe no ponto e voltávamos para recolhê-los no prazo por ela estipulado. Posteriormente, levávamos os técnicos para essas clareiras.

Certa vez levamos uma equipe de rapel para um ponto distante sete minutos e trinta segundos de vôo, a partir de uma pequena ilha fluvial no rio Roosevelt, a cerca de quatrocentos quilômetros ao sul de Porto Velho. Na ida, notamos que era possível aguardar, pousado nessa ilha, até o término da abertura da clareira. Desse modo, economizaríamos combustível.

Notamos, também, que havia uma cabana bem próxima, a única moradia das redondezas. Uma outra nas proximidades situava-se a cerca de quarenta quilômetros rio acima. Além dessa, o vazio de seres humanos e a plenitude da floresta.

Sabíamos que o barulho do helicóptero atrairia os moradores ali ao lado.

Dito e feito.

Deixamos a equipe no ponto previsto e pousamos na pequena ilha. A seguir, fizemos fogo para aquecer a “meia trava” – denominação da comida que levávamos. Não demorou nada e eis que surge o morador da cabana mais próxima. Vinha em uma canoa cheia de crianças. Atracou, cumprimentou e o convidamos para comer. Recusou, mas aceitou um cigarro com filtro que alguém lhe oferecera. E começamos a conversar:

– Como é seu nome? – perguntei-lhe.

– Severino – respondeu.

– Você é filho de um “soldado da borracha”2?

– Sim, senhor.

– Já tinha visto um desses? – perguntei, apontando para o helicóptero.

– Não, senhor.

Uma observação: essa resposta nos dá uma idéia da imensidão da Amazônia. A Amazônia legal corresponde a cinqüenta e um por cento do território nacional.

– Há quanto tempo você mora aqui?

– Eu nasci aqui.

– Teve muitos irmãos?

– Sim, senhor.

– E o que foi feito deles?

– Pegaram o regatão e saíram pelo mundo.

– Suas irmãs também?

– Sim, senhor. Casavam e iam embora.

– Casavam como?

– Algum homem no regatão se engraçava e as levava embora.

Detalhe: o regatão é um barco que faz comércio com os ribeirinhos, na base da troca, do escambo. Permanece em cada local o tempo suficiente para efetuar as trocas – no caso, alguns minutos.

– E quantos anos tinham suas irmãs quando foram embora?– voltei a perguntar.

– Uns treze – respondeu-me.

– E essa menina? – perguntei, apontando para sua filha, aparentemente entrando na puberdade.

– Já está quase no ponto.

– E quantos filhos você tem?

– Tive treze, mas só vingaram cinco.

– Você não acha que vive muito isolado?

– Não. Meu compadre mora perto (referia-se à cabana distante quarenta quilômetros rio acima).

– Se você, de alguma forma, ganhasse muito dinheiro, o que faria?

– Ah! Eu compraria tecidos nas Casas Pernambucanas, em Porto Velho.

– Por quê?

– Porque a chita está muito cara no regatão.

– E como você sabe que em Porto Velho é mais barata?

– É que meu pai me levou lá quando eu era criança.

– Você não gostaria de ir a uma cidade maior que Porto Velho?

Olhou-me cheio de espanto e exclamou:

– Maior que Porto Velho?!

Continuei a perguntar:

– O que você acha do governo?

E ele me respondeu:

– Ah! O governo está muito bom.

– Por quê?

– Porque o regatão já passou por aqui duas vezes este ano.

Não me lembro de toda a conversa, mas ficou em minha memória esse encontro com Severino, um brasileiro que vive com sua família no coração da Floresta Amazônica.



Regulador Xavier

Havia um colega cujo irmão possuía um regatão e com ele navegava pelos rios da Amazônia, efetuando as trocas. Como sempre lhe pediam remédios, embarcou, em uma de suas viagens, um grande estoque de Regulador Xavier, próprio para regular a menstruação.

Na ida, enquanto subia o rio, ia deixando o Regulador Xavier para qualquer queixa apresentada. Receitava para tudo – de dor de cotovelo a unha encravada. No regresso, vinha preocupado. Será que não estariam bravos com ele?

Para seu espanto, todos ficaram satisfeitos e queriam mais “daquele remédio bom para qualquer coisa”.



Laura em Belém

 


Laura estava grávida do Cláudio, e o parto estava previsto para aqueles dias.

Eu havia saído para uma viagem de oito dias, já se haviam passado vinte e não havia previsão de regresso.

Laura decidiu resolver o problema. Foi até a casa do comandante da base, bateu e foi atendida pelo próprio comandante.

– Pois não, minha senhora.

– O menino vai nascer e quero meu marido de volta.

– Mas quem é seu marido?

– O tenente Patto.

– Mas, minha senhora, é impossível tirá-lo de lá. Estamos sem helicóptero e lá não dá para pousar avião.

– Isso é problema do senhor. O meu é ter meu marido aqui. Lugar de pai é com a mãe no nascimento do filho.

No dia seguinte, um Sêneca1 pousou aos trancos e barrancos no local onde eu estava.

– Viemos te buscar para o nascimento de teu filho. Tua mulher está ameaçando bater no comandante – comentou o piloto.

1 Pequeno avião bimotor.



Super-Homem

Logo que chegamos a Belém, eu estava tomado pelo “Complexo de Super-Homem”. Era jovem, estava no auge do vigor e destreza física e achava que podia tudo, que nada ocorreria comigo.

Como na Amazônia há muita malária, tomávamos antimalárico (Fancidá, Aralem e Primaquina) como medida preventiva. De vez em quando, tomávamos também um anti-helmítico (Flagil). Na bula, estava escrito que a dose máxima diária era de quatro comprimidos.

Eu tomava oito!

Pior ainda. Era comum, na região do Amapá, ficar infestado por um tipo de carrapato minúsculo – o micuim. Era difícil livrar-se dele. Então, criei um processo infalível: colocava a roupa para ferver e passava Detefon em todo o corpo.

Haja complexo! Mas só muito depois teria consciência de que os abusos da juventude têm um preço. E até que saiu barato. Somente vim a ter o Parkinson.

“Se os jovens soubessem, se os velhos pudessem...”



A Formação do Universo Segundo os Ianomâmi

Em visita a uma tribo de índios Ianomâmis, em Roraima, conversava com um missionário que ali estava havia trinta anos. Curioso, pedi-lhe que contasse alguma história a respeito desses índios.

Atendendo a meu pedido, passou a narrar o que denominei “a formação do universo segundo os Ianomâmi”:

“Há muito, muito tempo, tudo que existia era um mundo em forma de bloco, boiando no espaço. Nele viviam os Ianomâmi e todos os bichos e plantas. E viviam muito bem. Todavia, como os Ianomâmi desagradaram a seus deuses, eles deixaram que este mundo apodrecesse e esfarelasse. E esses farelos se espalharam, como podemos constatar a noite, no céu. São as estrelas. E, em cada um desses farelos, vivem, ainda hoje, Ianomâmi, bichos e plantas. E acreditam que, um dia, os deuses vão perdoá-los e permitirão que esses farelos se aglutinem, voltando ao estado original.

E vai ser bom, porque reunirá, novamente, todos os Ianomâmi”.



Piadinha Amazônica

João e Maria viajavam de regatão.

Entraram já ao anoitecer e penduraram suas redes.

Caiu a noite. Era uma noite particularmente escura.

Não havia reflexos na água, nem se viam estrelas no céu.

Não dava para enxergar a ponta do nariz.

Maria chama João:

– João!

– O que é Maria?

– Tu tá em mim?

– Tô não.

– Então tão!



Questão de Nome

Numa ocasião, um dos tenentes do esquadrão voava com um T-25, de São Luís, no Maranhão, para Fortaleza, no Ceará, e teve uma parada de motor. De imediato, executou o procedimento de emergência previsto e, como o motor não deu nova partida, prosseguiu planando até pousar na pista de uma pequena cidade do interior.

Pousou bem, mas como não havia conseguido comunicar-se com o centro de área para informar que iria pousar, dirigiu-se à telefônica local, explicou a situação para a telefonista e solicitou à mesma que enviasse um recado para o esquadrão, para que alguém fizesse uma ligação de retorno.

E permaneceu aguardando.

Recebi o recado e, de imediato, liguei para a telefonista local, tendo-me identificado como capitão Patto, ao que ela respondeu:

– Como é seu nome?

– Patto – repeti.

E ela desligou o telefone. Pensava que era trote.

E eu tinha pressa de falar com o tenente.

Voltei a ligar.

Atendeu outra telefonista e foi logo perguntando:

– Como é seu nome?

– Paton – respondi. O mesmo nome do general americano.

Só então fui atendido.

Mas um nome desse tem muitas vantagens.

Uma delas é que todos lembram, e você fica logo conhecido. A outra é que gera piadas e brincadeiras, o que facilita um relacionamento bem-humorado. E, para adiantar as coisas, costumo fazer eu mesmo as chacotas.

Mas a melhor foi feita por um grande amigo, a quem prezo muito. Ele passou vários dias me chamando de “Patto, o Polivalente”. E eu deixava passar. Mas, depois de alguns dias, a curiosidade venceu e perguntei o porquê. Ao que ele respondeu:

– Pato: anda, nada, mergulha e voa... mal.

Mas o que me contraria nessa questão de nome é que todo mundo acaba “pagando o pato” – e até agora não recebi nem um centavo. Aquele que estiver devendo, queira, por gentileza, enviar o montante, em cheque, para o meu editor.



Poliglota

Como tenente, fui encarregado de realizar uma Investigação de Acidente Aeronáutico, envolvendo uma aeronave de procedência norte-americana que estava sendo trasladada para um país africano.

O motor apresentou falha em vôo, e o piloto pousou em uma cidade interiorana para verificar o problema. Ao pousar, a bequilha quebrou, o que causou alguns danos à aeronave.

Eu já sabia que o piloto não falava português – e eu não entendia inglês.

Lá chegando, em conversa com o guarda-campo1, manifestei minha preocupação lingüística, ao que ele retrucou:

– Pode deixar comigo, tenente. Por aqui passam muitos americanos, e eu sei falar com eles.

Estranhei. Mas permanecemos aguardando.

Não demorou muito e chegou o piloto envolvido no acidente.

E o guarda-campo foi logo dizendo:

– Mim querer saber problema...

E achava que estava falando inglês!
1 Indivíduo encarregado de manter o campo desimpedido para pouso e de manter, em livro próprio, o movimento de aeronaves.
  


Outra Grávida

Um colega, piloto do outro esquadrão, ia ficar noivo e nos convidou, Laura e eu, para a festa de noivado. Não conhecíamos a noiva. Como eu viajava muito, não fomos ao noivado e, protelando, acabamos por não enviar nem mesmo um telegrama.

Passou o tempo.

Eis que um dia recebemos novo convite, dessa vez para o casamento.

Novamente, ocorreu o mesmo. Não comparecemos e não enviamos presente ou congratulações.

Passados vários meses, estávamos no Clube, quando nos deparamos com o casal. Ainda com a consciência pesada devido ao descaso anterior, fui cumprimentá-los, todo efusivo:

– E então? Há muito queria conhecê-la.

E, sem titubear:

– E o nenê, para quando é?

Ao que ela respondeu, pausadamente:

– Eu não estou grávida!

Era gordinha por natureza.



A Mão Decepada

Eu estava, novamente, em operação no Radam.

O acampamento era grande. Cerca de cem civis e vinte e cinco militares.

Contávamos com quatro helicópteros para cumprir a missão, um avião Islander, de apoio logístico, barracas de cobertura dupla, gerador, freezer, fogões, máquina de lavar roupa, cozinheiros, uma enfermaria, médico, enfermeiro...

À época, eu era primeiro-tenente e, naquela manhã, o militar de patente mais elevada. Como tal, eu chefiava a fração aérea.

Os civis tinham sua própria chefia, mas era comum recorrerem aos militares quando ocorria algo mais grave.

Não havia terminado de tomar o café quando vieram me chamar:

– Tenente, o administrador do Radam está aí e quer falar com o senhor.

Fui até ele. Estava acompanhado de dois peões, um deles com a mão quase que totalmente decepada. Mandei chamar o médico e acionei o piloto do Islander para uma decolagem imediata, com destino a Manaus. Em poucos minutos, decolaram o piloto, o médico e o peão ferido.

Voltei-me, então, para o outro peão:

– Foi você quem fez aquilo? – inquiri.

– Sim, senhor.

– Bebida? (Era proibido o ingresso de bebidas no acampamento).

– Sim, senhor.

– Como foi?

– Com facão.

– Prepare suas coisas que amanhã você segue de Islander para Manaus, para ser entregue à polícia.

Era o que eu podia fazer, naquela situação. Eu achava que ele fugiria à noite, entrando na mata.

Mas, no dia seguinte, lá estava ele, com sua trouxa, aguardando o Islander para seguir preso para Manaus.



O Rabo do Macaco

No folclore amazônico, há muitos talismãs destinados a dar sorte. Um dos mais conhecidos é o rabo do macaco prego.

A esse respeito, contam que, certa vez, viajavam pela Amazônia, de Catalina1, um brigadeiro, pilotando, e sua esposa, de passageira.

Em um dos locais em que pousaram, alguém deu à esposa do brigadeiro um macaco prego. Fazia, porém, muito calor no Catalina, e a viagem era demorada.O macaco começou a passar mal e, com o decorrer da viagem, foi piorando. Foi então que o mecânico de bordo perguntou à esposa do brigadeiro:

– Madame! Se o macaco morrer a senhora me dá o rabo?

Fez-se silêncio total.

Achando que havia dado mancada, resolveu consertar:

– Do macaco, é lógico.

1 Avião anfíbio. Foi muito utilizado na Amazônia.



O Mistério dos Peixes

Lembro-me também de um dia em que aguardávamos o término da abertura de uma clareira, pousados numa formação rochosa parecida com o Pão de Açúcar, na região de São Gabriel da Cachoeira.

Ali, no topo, havia uma depressão onde se acumulara água da chuva. Como na Amazônia chove todo dia, era razoável esperar que aquele laguinho fosse perene. O que nos garantiu isso foi a presença de peixinhos nesse lago. Daí a pergunta: como os peixinhos foram parar lá?

Fiquei com essa dúvida durante anos até que, um dia, meu filho, já biólogo, explicou-me:

– Os passarinhos ciscam nas margens dos riachos e ficam, às vezes, com barro grudado nos pés. Nesse barro, pode haver ovas de peixes, o que se constitui um meio de transporte até o topo da formação rochosa.

Quem diria!



O Parto da Índia Yanomâmi

A índia Ianomâmi, quando vai parir, embrenha-se na mata e tem o filho sozinha. Assim que nasce, se for o seu desejo, ela o mata e enterra – o que faz, normalmente, quando está amamentando outro filho.

Caso retorne à aldeia com a criança, perde esse direito. O filho passa a ser da tribo, e não mais dela.



Ainda Yanomami

Novamente operando a partir da tribo Ianomâmi, conversava com o padre Carlos, missionário que lá estava havia anos, quando passaram dois índios com o corpo todo pintado. Andavam abraçados, ou melhor, parecia que dançavam.

Perguntei ao padre Carlos do que se tratava, e ele explicou:

– Às vezes, quando o índio vai caçar, e passa vários dias fora, sua mulher deita com outro índio. Quando o marido regressa, ela tem que escolher com qual ficar, pois não pode ficar com os dois. Ambos se pintam dessa maneira, para ficarem enfeitados e bonitos, e ficam desfilando pela aldeia, abraçados, aguardando a decisão da índia.



Colhendo Castanha

Voava de regresso de mais um dia de Radam, com o professor Murça a bordo. Ele era um cientista do museu Emílio Goeldi, em Belém, e, às vezes, vinha voar conosco. Era um prazer conversar com ele. Era botânico, sabia tudo.

Naquele momento, estávamos passando por uma espécie de bosque. As árvores eram todas iguais. O professor Murça ficou logo indócil. Perguntei ao artilheiro:

– O que está havendo?

– É o professor Murça. Quer saber se é possível apanhar uma castanha daquelas árvores.

– Você está com o “rabo de gato”1?

– Sim, senhor.

– Então, diga a ele que sim, mas que permaneça com os cintos fechados.

Fazendo um flare (manobra que desacelera o helicóptero), pairei sobre uma daquelas árvores e fui mergulhando nela até onde foi possível.

O artilheiro, de pé no esqui2, não teve dificuldade – apanhou uma castanha e fomos embora.

Quando chegamos ao acampamento, fomos, de imediato, falar com o professor Murça, para saber o motivo de tanto entusiasmo.

Como sempre, brindou-nos com uma aula. Disse que aquelas árvores viviam em simbiose com determinadas formigas – daí terem o mesmo nome (não me recordo o nome). Essa árvore leva seis anos para crescer, florescer e dar a castanha e floresce uma só vez. Quando isso ocorre, sua seiva torna-se adocicada, e a formiga alimenta-se dela. Com isso mata a árvore.

Nesse meio tempo, a formiga protege a árvore do ataque de outros insetos.

1 Colete dotado de um tirante que fica preso à fuselagem. Provê segurança.
2 No UH-1H, substitui as rodas.



Pernoite na Clareira

Numa ocasião em que operávamos no Radam, tínhamos que deixar uma equipe de rapel para abrir uma clareira que já se sabia trabalhosa. No dia anterior, havíamos tentado, mas a corda, normalmente utilizada, era pequena (cinqüenta metros). As árvores, nesse local, eram altas, mas agora levávamos uma corda de oitenta metros. O chefe da equipe de rapel já havia combinado que, por via das dúvidas, eles só deveriam ser resgatados no dia seguinte. Pernoitariam na clareira.

Deixamos a equipe no local e regressamos. À tardinha, porém, recebemos um comunicado da equipe, via rádio, que houvera um acidente e estavam precisando de um médico. Perguntei se era possível pousar e afirmaram que sim, alertando, porém, que a única aproximação possível era de frente a uma castanheira, por dentro de um “túnel” de árvores.

Devido ao avançado da hora, se fôssemos de imediato, chegaríamos ao local ao anoitecer. Teríamos que pousar de qualquer maneira, e o risco era grande. Consultei a tripulação e o médico, e todos concordaram em fazer a missão.

Decolamos de imediato e para lá nos dirigimos, com a velocidade máxima permitida pelo helicóptero. Chegamos ao anoitecer e, realmente, só havia aquela opção para aproximação e pouso.

Felizmente, o acidente não havia sido grave – um pau havia caído na cabeça de um dos peões, e ele havia desmaiado.



Plantas Carnívoras

Em outra ocasião, estávamos na Serra do Aracá, e o professor Murça estava conosco. Comíamos a “meia-trava”, à beira de um riacho.

A certa altura, perguntei:

– Professor, na Amazônia existem muitas variedades de plantas carnívoras?

Ao que ele respondeu:

– Você está sentado em cima de uma.

Não pude me conter. Levantei-me de um pulo.

– Onde está, professor?

– Procurem que vocês acham

Todos já estavam procurando.

Procura daqui, procura dali e nada. Ninguém encontrava.

– Estão vendo essas florzinhas vermelhas, bem pequeninas? – e apontou para uma flor que devia ter, no máximo, uns dois milímetros de diâmetro.

– Apanhem uma dessas – voltou a observar.

– Agora, olhem para ela, pondo-a contra o sol. O que vêem?

– Umas bolinhas meio transparentes – disse eu.

– Pois essas bolinhas são como uma cola. Pequenos insetos pousam aí, ficam grudados, e a planta os digere.

– Agora, apanhem, no riacho, uma daquelas que está boiando. Essas coisas que parecem raízes são, na realidade, tentáculos. Servem para capturar pequenos animais aquáticos.

Ficou uma lição. Os olhos servem para ver, não para enxergar. Para enxergar, é preciso saber ver.




Cachoeira do Aracá

A Serra do Aracá faz parte de uma formação montanhosa da Venezuela. É um platô com escarpas íngremes no lado brasileiro.

Toda a região é rica em ouro e diamantes. O terreno tem uma composição argilosa que o torna parcialmente impermeável. O riacho às margens do qual conversávamos com o professor Murça é um dos escoadouros do platô. Normalmente com pouca água, deve aumentar dezenas de vezes seu volume quando chove pesado e por muito tempo. Isso pode ser deduzido ao observarmos o seu leito e as suas margens, com suas pedras arredondadas, sinal de forte erosão. O riacho termina em uma cachoeira, adentrada no platô por mais de um quilômetro, por força da erosão. Ficamos imaginando, então, que lá embaixo, no pequeno lago no qual deságua a cachoeira, devem estar o ouro e os diamantes, arrastados pela força das águas no acúmulo do tempo.

Por isso desejávamos ir até lá.
A única maneira era de helicóptero. Mas não por cima. O vento, batendo naquelas fendas e protuberâncias, turbilhonava forte. Com certeza derrubaria o helicóptero.

Resolvemos ir por baixo, pelo canyon cavado na rocha. Ventava muito, também. Avançamos devagar, quase na velocidade de um homem a pé. Às vezes, dava para ir mais rápido, quando o vento amainava.

Quando chegamos, pousei numa das pedras que víamos lá de cima e cortei o motor. O espetáculo era alucinante: a água da cachoeira descia de modo convencional até uma certa altura. Daí para baixo, o vento a transformava em uma cortina d’água, mudando suas formas, como se fosse um bailado. E o sol, beijando as fímbrias dessa cortina, tornava-a multicolorida, cambiando as cores, a todo momento.

Medi a altura da cachoeira comparando a indicação do altímetro com o helicóptero pousado lá embaixo e lá em cima. Deu duzentos e oitenta e dois metros.



Pista em Uai-Uai

Havia uma equipe de militares abrindo uma pista em Uai-Uai, numa região próxima à Guiana Inglesa. O local era mata fechada, ao lado de um riacho (não mais que vinte metros de largura). O apoio só era possível de helicóptero. Ocorre que houve uma falha em um componente dos helicópteros, o que ocasionou a interdição de todos os helicópteros da FAB, daquele tipo, enquanto se aguardava uma remessa dos componentes, vinda do exterior.

E os dias foram passando.

Informaram, pelo rádio, que a comida estava acabando. Isso não preocupava, pois havia muito peixe no riacho.

Alguns dias depois, informaram que estava acabando a farinha. A situação começou a ficar grave.

Mais alguns dias e veio a mensagem: estava acabando a cachaça. A situação ficou crítica.

Planejamos, então, um apoio aéreo realizado com L-19, um Cesna de Ligação e Observação que tinha, como uma de suas peculiaridades, a capacidade de realizar pousos extremamente curtos, necessitando de pouca pista para pousar. A equipe que trabalhava na abertura da pista garantiu-nos que já havia limpado e destocado duzentos metros de área para pouso.

Como não era possível alcançar o local a partir de alguma outra pista, decidimos pousar na estrada vicinal que a Andrade Gutierrez estava abrindo em direção ao traçado da Perimetral Norte. Solicitamos que essa empresa levasse combustível para o local, de caminhão, a partir de Cachoeira da Porteira. Assim foi feito e seguimos para o pouso na estrada, eu e outro piloto, cada qual em um avião.

Cada um de nós levava duzentos quilos em mantimentos e mais um tamborete de combustível, necessário para o regresso.

Pousamos na estrada sem problemas, abastecemos e seguimos para Uai-Uai. Lá chegando, passamos a circular. A copa das árvores tampava quase tudo. Mal dava para ver o chão. Do solo, a equipe reafirmava que era tranqüilo, que havia bastante espaço e podíamos pousar tranqüilamente. Fui o primeiro.

Fiz a aproximação o mais baixo possível, rente às árvores e com um mínimo de velocidade. Ao chegar à borda da clareira, tirei o motor, mergulhei e voltei a dar todo o motor, para amortecer o impacto (o L-19 era muito resistente a impactos com o avião alinhado).

Parei com algumas dezenas de metros de corrida no solo.

Realmente, havia muito espaço pela frente.

Pelo rádio, passei as informações para o outro piloto e logo ele estava no chão.

A alegria da equipe era gratificante.

Agradeceram muito e prometeram que, quando a pista ficasse pronta, haveria lá uma placa com o nosso nome.

Acho que esqueceram.



Incesto

Havia deixado uma equipe de rapel para abrir uma clareira e pousei o helicóptero num roçado ao lado de uma casa de pau-a-pique, coberta de palha, para aguardar o tempo necessário para o recolhimento do pessoal.

Para o morador devia ser apavorante aparecer, em seu quintal, uma máquina esquisita que, provavelmente, nunca havia visto, fazendo uma barulheira infernal, bufando, ventando e, quem sabe, até derrubando a casa! Por isso mesmo, após desligar o motor, fui explicar ao proprietário o porquê daquela intrusão. Vestia o uniforme de vôo: macacão de vôo, bibico, cinto com um Taurus 38 de um lado e uma faca no outro. Naquele contexto, nada simpático.

No caminho, avistei, na janela, uma mocinha com um bebê no colo. E encontrei, à minha espera, um senhor de meia idade e entabulei conversa:

– Então! O senhor é o dono?

– Não, não. O dono da casa está no mato. É caçador de onça.

– E o senhor, quem é?

– Eu sou o professor da criança.

– A que estava no colo da moça?

– Ela mesma.

Expliquei o porquê de estarmos ali e passamos a conversa para outros assuntos.

O que ocorreu?

Para mim, aquele senhor ficou assustado e inventou a história do caçador de onça para me intimidar (o caçador de onça é tido como um homem muito valente). E a menina na janela era, com certeza, filha daquele senhor. Provavelmente, quando a esposa morreu, ele passou a ter relações com a filha – com a qual teve aquele bebezinho.

Um caso típico de incesto, comum na região amazônica.



Conversa

O comandante do esquadrão era gago; o chefe da manutenção, ansioso.

Era dia de jogo da Copa do Mundo, e o comandante mandou chamar o chefe da manutenção. Após os cumprimentos de praxe, entabulou-se a seguinte conversa:

– Fulano, vo...vo...você, dis...dispensa se...seu pe...pe... pessoal...

– Não, senhor! Não dispenso ninguém. Não sem falar com o senhor.

– Na... não – o esforço aumentava e a gagueira piorava – vo... vo...vo... você dis... dis... dis...

– Não, senhor. De modo algum. Eu jamais dispensaria alguém sem antes falar com o senhor.

Foi difícil passar a mensagem de que era para dispensar o pessoal para que pudessem assistir ao jogo da Copa do Mundo.



Por Falar em Chefe

O cidadão entra na loja que vende animais e pergunta:

– Quanto custa este papagaio?

– Mil reais – responde o dono da loja.

– Tudo isso? O que ele faz?

– Ah! Ele cumprimenta, chama o cachorro, assobia...

– E esse outro?

– Dois mil reais.

– Puxa vida! E o que ele faz?

– Também cumprimenta, fala uma porção de coisas, assobia todo o Hino Nacional ..

– Muito bem. E aquele na vitrine?

– Ah! Aquele é caro. Cinco mil reais.

– Mas é muito caro. E o que ele faz para valer tudo isso?

– O que ele faz eu não sei. Mas os outros dois chamam ele de chefe.




Desarmando Bomba

Inicialmente, nosso esquadrão contava com três tipos de aviões: de Ataque ao Solo (NA T-6), de Ligação e Observação (L-19) e o Helicóptero (UH-1H).

Certa vez, fomos a Manaus com quatro NA T-6 para participar de uma manobra do Exército. Cada aeronave estava municiada com quatro bombas de duzentas e cinqüenta libras, que deviam ser jogadas para explodir dentro de uma clareira. Se explodissem antes, pegariam a tropa verde; se depois, a amarela. Por esse motivo, lançamos as bombas na menor altura possível, dentro dos limites de segurança. Deu para sentir a onda de choque na cauda do avião.

O comandante da esquadrilha, no entanto, era brincalhão... um gozador.

Ao pousarmos, regressando à Base Aérea de Manaus, inventou dizer ao oficial de armamento que uma bomba não havia explodido, e que ele deveria ficar alguns dias para desarmá-la.

Tanta coisa inventou que deixou o outro preocupado. E mais: convenceu-o a escrever uma carta à esposa, para ser entregue numa eventualidade.

É claro! A brincadeira foi desfeita antes do regresso à sede, e a carta devolvida.

Deve estar guardada até hoje.



Nuvem de Tempestade

Como eu tinha Cartão de Vôo por Instrumentos, fiz muitos vôos noturnos para o Nordeste com outros pilotos que precisavam de treinamento para obter o cartão.

Num desses vôos, decolamos de Recife e, na subida, passamos por uma camada de nuvens e deparamos com um espetáculo sempre renovado. O céu estava limpo, e a lua brilhava ofuscando as estrelas. Um pouco à direita na rota erguia-se, majestoso, um Towering Cumulus (TCU), uma nuvem de tempestade.

Voávamos um Universal T-25, um pequeno avião de treinamento avançado, com dois assentos, lado a lado.

Talvez inspirado pela majestade do TCU, meu companheiro perguntou:

– Já entrou em um desses?

– Não – respondi.

– Vamos entrar?

– Vamos – respondi, sem pensar.

E começamos a nos preparar.

Checamos se havia alguma coisa solta, apertamos cintos e suspensórios, selecionamos a viseira do capacete. Conhecíamos a teoria e revisamos todos os procedimentos.

E entramos.

E era muito pior do que havíamos imaginado.

O avião saltava de tal modo que mal conseguíamos evitar a entrada em atitude anormal.

Durou apenas alguns segundos.

Saímos, de repente, a noventa graus com a proa de entrada.

O TCU, literalmente, nos cuspiu para fora.

E o meu companheiro, virando-se para mim, disse:

– Você é uma besta.

Ao que respondi:

– E você é outra.




Quem Está Pilotando?

Eu estava de passageiro em um C-47, avião de transporte bimotor, com capacidade para vinte e tantos passageiros. Por injunções outras, estava à paisana. Havíamos decolado de Belém e nosso destino era Tucuruí, ao sul do Pará. Havia, a bordo, um general, com sua comitiva, que tinha fama de não gostar de voar.

Num dado momento, o piloto em comando mandou o outro ir conversar com o general. Logo a seguir, determinou ao sargento que me chamasse, instruindo-o para não me tratar de tenente.

Quando cheguei à cabine, ele pediu-me que fosse pilotando e também foi conversar com o general. Com os dois pilotos ao seu lado, o general ficou nervoso.

– Afinal! Com vocês dois aqui, quem está pilotando a aeronave?

Ao que o piloto em comando respondeu:

– Aquele civil que estava aqui.

– Mas ele sabe pilotar?

– Não, mas ele aprende rápido.



Voando Monomotor

Embarquei em um C-47 como passageiro, juntamente com um colega de esquadrão cuja característica mais marcante era sua presença de espírito, no sentido de perceber o inusitado e o ridículo e reagir prontamente de forma inteligente e criativa, se bem que normalmente com ironia.

Estava previsto que embarcariam nesse avião vinte e poucos militares do Exército, e o plano de vôo, já entregue, continha essa informação.

Passou a hora da decolagem e, como o pessoal do Exército não chegava, o piloto resolveu partir. Deu ordem para embarcar algum material que estivesse aguardando transporte e lá fomos nós com sacos de mantimentos, aparelhos de rádio transmissão e outras cargas.

Quando estávamos no través de Tucuruí, um dos motores começou a falhar e, em seguida, parou. O piloto “embandeirou”1, mas o avião não se agüentava com um só motor. Começou a descer. Nós aguardávamos, com ansiedade, a ordem de alijar carga. Finalmente, veio a ordem. Amarreime com uma cinta de amarração de carga, para não correr o risco de cair, e fui para a porta. Enquanto isso, o mecânico e meu companheiro passavam-me a carga a alijar. Aliviado de peso, o avião se manteve e foi possível chegar à Base Aérea de Belém. Como o C-47 não taxia monomotor, o piloto cortou o motor ainda na pista e aguardamos a chegada do oficial de operações. Esse, não tendo conhecimento da mudança – levar carga no lugar de pessoas –, estranhou ao olhar dentro do avião. Meu colega, percebendo a sua dúvida, pôs a mão no ombro do militar e exclamou:

– Negão, foi barra. Tivemos que jogar quase todo mundo para fora do avião, para aliviar o peso.

1 Colocou o passo da hélice para uma posição de mínima resistência ao avanço. É um
procedimento necessário no caso de parada do motor.



Mordendo a Orelha do Burro

Certa ocasião houve a necessidade de transportar um burro no helicóptero.

O trecho a ser voado era de mata fechada, sem possibilidade de pouso.

Como não havia com o que dopar o animal, tratou-se de amarrá-lo bem. Todavia, tanto esforço fez que, já em vôo, começou a se soltar. O mecânico, por sua vez, não conseguia acertar as amarras, pois o burro se debatia, não ficava quieto.

Vendo isso, o tenente Oscar, piloto em comando, berrou para o mecânico:

– Morde a orelha dele! Morde a orelha dele!

E o mecânico não entendia, não mordia.

Percebendo que não seria atendido, passou a pilotagem para o 2P1, soltou o cinto e os suspensórios, desconectou o capacete, passou por cima do painel central e deu uma senhora mordida na orelha do burro. O muar baixou a cabeça, esticou as pernas e aquietou, possibilitando ajustar novamente as cordas.

1 Segundo piloto.



Chupa-chupa

Certa vez, apareceu, por vários dias consecutivos, um Objeto Voador Não Identificado, em algumas localidades ribeirinhas, a nordeste de Belém do Pará.

A investigação realizada por ordem da Força Aérea não conseguiu esclarecer as aparições. Havia, também, denúncias de que várias moçoilas haviam sido atacadas por tripulantes ou passageiros desses objetos voadores, os quais chupavam as moças no pescoço. Dessa vez, a investigação obteve bons resultados. Os exames realizados no Hospital de Aeronáutica de Belém confirmaram – as chupadas eram humanas mesmo.



Afrodisíaco

Eu estava viajando.
Laura foi com um amigo nosso e sua esposa passear no
Ver o Peso1. Meu amigo havia se distanciado um pouco,
quando Laura e a amiga viram algo estranho pendurado
em uma das barracas. Curiosas, perguntaram ao vendedor
o que era aquilo, e ele não quis dizer.
Pediram, então, ao meu amigo para averiguar. Ele foi e
perguntou:
– O que é isso?
– É o órgão sexual da bota – respondeu o vendedor.
– E para que serve?
– Para dar potência.
– E como usa?
– Pode fazer chá, fazer pomada ...

1 Mercado a céu aberto, típico de Belém do Pará.



Strike

Liderava uma “esquadrilha de T-25”1.

Após darmos a partida, taxiamos em direção à pista e, quando autorizado, tomei posição com a esquadrilha, na cabeceira da pista, e iniciamos a decolagem.

Já estávamos quase com a velocidade de tirar os aviões do chão, quando avistei algo na pista. Logo a seguir, consegui identificar: eram urubus.

Não havia como parar. Se abortasse a decolagem, os aviões poderiam se chocar. E a colisão com os urubus era iminente.

Falei pelo rádio:

– Urubus na pista. Mantenham.

Foram penas para todos os lados.

Pousamos em seguida para verificar o estrago.

Não houve danos. Matamos quatro urubus.

Escore: Esquadrilha quatro, Urubus zero.

1 Quatro aviões voando juntos.



Guerra de Índios

Estávamos em Surucucu, em uma Operação Radam.

Havíamos acabado de chegar, e vieram nos avisar que os índios estavam guerreando na pista de baixo (havia duas tribos).

Decolou uma tripulação com o helicóptero UH-1H e foi para lá, acabar com a briga. Realmente, lá estavam as duas tribos, uma de cada lado da pista, atirando flechas uns nos outros. O piloto fez, então, um vôo pairado sobre os índios para dispersá-los. Mas eles gostaram. Tanto é que, no dia seguinte, à mesma hora, lá estavam eles novamente, esperando o “fazedor de vento”.

Detalhe: a briga era motivada pela carência de mulheres. Como havia poucas, os índios de uma tribo roubavam as mulheres da outra, em uma sucessão interminável de seqüestros.



Quem tira a cordinha

Os índios Ianomâmi usam uma cordinha na cintura, com a qual amarram o pinto. Não sei exatamente qual a vantagem ou qual a finalidade. Mas sei que eles só desamarram para urinar.

Para relações sexuais, quem desamarra é a índia.




Nadando Pelado

A maioria dos índios andam nus ou seminus.

Numa ocasião em que estava em uma tribo, fui com eles nadar em um lago próximo à aldeia.

Para ficar igual, resolvi nadar pelado também.

Para minha surpresa, os índios apontavam para meus genitais e riam a valer.

Eu tinha pentelhos, e eles não.

E achavam engraçado.



Noivo

Fui noivo várias vezes.

No primeiro noivado, compareceram meus pais. Já no segundo, meu pai negou-se a comparecer.

Da Laura não fiquei noivo. Argumentei que era fora de moda, mas nunca disse à Laura que havia sido noivo.

Passados dois anos de casados, ao chegar em casa, Laura me acusou:

– Você não me disse que já foi noivo.

Ao que respondi:

– Você não me perguntou!



Pegando

Estávamos com um helicóptero em Porto Velho.
Um dos tripulantes era loiro, de olhos claros (verdes ou azuis), o que, na época, era uma raridade na região. Andava ele pela cidade, quando foi abordado por uma garota, acompanhada de sua irmã. Conversa vai, conversa vem, foram os dois para a casa da guria e mandaram brasa. Dali saiu e foi tomar um refrigerante, no centro da cidade. Não demorou muito e apareceu novamente a irmã da garota com quem havia ficado.

– Oi! Cadê sua irmã? – perguntou por perguntar.

– Está em casa pegando– respondeu.

– Pegando o quê?

– Venha comigo que eu lhe mostro.

E se foram novamente para a casa da garota.

Lá chegando, encontraram a guria, deitada, com as pernas para cima.

Estava pegando filho!



Crítica

Estávamos operando no Radam, com sede em Cruzeiro do Sul, no Acre.

Como os helicópteros estavam indisponíveis, devido à falta de algumas peças, eu passava o dia planejando a operação Radam com a utilização dos Napaflu1 da nossa Marinha de Guerra.

Como a Bacia Amazônica permite a navegação fluvial por quase toda a Amazônia, minha idéia era operar a partir dos Napaflus com os nossos helicópteros, o que substituiria a estrutura atual por outra menor, mais ágil e menos dispendiosa.

Ao concluir um esboço desse planejamento, dirigi-me ao major que comandava a fração aérea e apresentei-lhe minha idéia.

Para minha surpresa, ao invés de fazer os comentários de praxe, aceitando alguns pontos e rejeitando outros, argüiu:

– Façamos um acordo, Patto. Você apresenta esse planejamento a todos os oficiais na Reunião do Pôr-do-Sol2.

Após a apresentação pedirei a todos que apontem os deméritos. Mas você não deverá retrucar, seja qual for a crítica apresentada. Depois disso, conversaremos.

E assim foi feito.

Apresentei aquele esboço de projeto e, após terminar, o major solicitou a todos que apontassem as falhas e que não poupassem criticas.

Quando terminamos, chamou-me para uma conversa:

– Muito bem, Patto. Agora você reformula seu planejamento com base nas críticas apresentadas e, quando estiver pronto, faremos nova apresentação.

Fizemos mais duas ou três apresentações, e as críticas foram diminuindo até o ponto em que a maioria concordava com o projeto, que ficou bastante modificado.

Após a última apresentação, o major fez o seguinte comentário:

– Encerramos a apresentação do Projeto Radam com Apoio de Napaflu. Como puderam notar, esse projeto que, inicialmente, era inteiramente da autoria do tenente Patto, ficou bastante modificado e, hoje, é um projeto de todos nós. E não há duvida de que está bem mais completo, praticável e exeqüível. Se o projeto Radam, na Amazônia, não estivesse próximo de seu término, seria bom tentarmos levá-lo adiante. Mas creio que a experiência serviu para demonstrar a utilidade da crítica – e do trabalho em grupo.

– Valeu, major.

1 Navio Patrulha Fluvial, de nossa Marinha de Guerra. Possui acomodações para pessoal e espaço para levar material. Possui, também, um heliponto no convés.
2 Reunião após o termino da jornada de trabalho, destinada a comentar e registrar as missões do dia e a preparar as missões do dia seguinte.



Patanão

Quando acampados, era comum reunirmo-nos à noite ao pé do fogo, jogando conversa fora, enquanto esperávamos o sono chegar.

Em uma dessas ocasiões, a conversa descambou para histórias de caçador e de pescador, com tudo exagerado: cobras imensas, que engoliam um boi sem engasgar; lambaris de trinta quilos, depois de limpos ...

Lá pelas tantas, decidido a entrar na roda, perguntei:

– Algum de vocês já ouviu falar do patanão?

Como ninguém tinha ouvido nada parecido, iniciei a narrativa:

“O patanão pode ser encontrado lá pelas bandas do Cafundó, na virada da Serra da Mantiqueira, onde meu pai possuía uma fazenda.

A última vez que o encontrei foi durante uma caçada, na qual, infelizmente, eu estava sozinho, não havia quem pudesse testemunhar. Mas vocês podem acreditar que tudo que vou narrar é a mais pura expressão da verdade.

Eu pretendia caçar o que viesse e pudesse. Para isso levava uma cartucheira, munição e um bornal. Mas tinha esperança de encontrar patos selvagens, pois o caseiro havia visto alguns pela região por aqueles dias.

Anda daqui, anda de lá e nada. Passavam as horas e nada de patos, nada de bichos, nada de nada. Já estava quase desistindo, quando ouvi um barulhinho bem baixinho, como se viesse bem de longe. Esse barulhinho me era familiar: era de um animal com que deparara havia muito, muito tempo. Julgava até que estivesse extinto. Mas estava lá, com seus quaquinhos. E o quaquejar baixinho prosseguia ao redor de minha cabeça.

Logo a seguir, avistei-o. Levei a mão para apanhá-lo e, para minha surpresa, pousou nela suavemente. Era um pato de pouco mais de um centímetro de comprimento. Um patanão, como era conhecido na redondeza. E era dos grandes. O que eu havia visto, anos atrás, não era maior que um pernilongo. E aquele tinha uma mancha branca no peito. Então, examinando bem, constatei que esse também tinha a mesma mancha branca. Era o mesmo patanão! E me reconheceu.”

Depois dessa, fomos dormir.



Descendo de Rapel

Já estava com o helicóptero pairando sobre a copa das árvores e a equipe de rapel preparava-se para descer e abrir a clareira necessária para a pesquisa do Radam.

O primeiro a descer passou a corda pelo mosquetão, foi para o esqui, iniciou a descida, mas parou antes de chegar ao solo. E o artilheiro, que monitorava a descida, continuou informando:

– Ainda está parado, tenente. Está fazendo uma porção de sinais, mas não entendo a que quer dizer.

– Ele deu a laçada? – perguntei. (Era previsto que, no caso de a corda trancar, o rapelista deveria dar uma laçada, para garantir que se mantivesse preso, e sinalizasse para que subíssemos. Só então o levaríamos pendurado até um local em que pudéssemos colocá-lo no chão).

E o artilheiro respondeu:

– Não, senhor. Não fez a laçada, não fez sinal para subirmos... Espere. Reiniciou a descida.

E desceram todos os quatro, sem mais novidades.

Mais tarde, depois de recolhermos a equipe, perguntamos o que havia ocorrido.

Havia uma sucuriju bem debaixo do helicóptero. Ficou guardando ela se afastar para reiniciar a descida.



Brasília - DF



Movimentos Involuntários

Passei um ano no Rio de Janeiro fazendo o último curso da carreira, no Campo dos Afonsos – Curso de Política e Estratégia Aeroespaciais. Na ocasião, o Parkinson já se manifestara, e eu não sabia ao certo como estava evoluindo. Assim, de três em três meses, mais ou menos, eu ia ao médico, no Hospital da Força Aérea do Galeão, para um acompanhamento.

Quando regressei de uma dessas visitas, um colega, preocupado com minha saúde, veio falar comigo:

– Então, Patto, como está?

Respondi bem sério:

– Estou bem. O médico receitou-me novos remédios... O ruim são os efeitos colaterais.

– Quais efeitos colaterais?

– O pior deles são os movimentos involuntários.

– Como assim?

– É como o nome diz. São movimentos que independem de sua vontade. São involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.

– Ah!

E a conversa parou por aí.

Passados alguns minutos, esse colega se distraiu, deu-me as costas e passou a conversar com outra pessoa. Aproveitei a distração e dei-lhe um “telefone” nos ouvidos. Ele virou-se rápido, para revidar, e eu disse:

– Ah, ah!!! Movimentos involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.



Interferência Eletromagnética

Almoçava no Rancho do Grupo de Apoio de Brasília com outros coronéis. A conversa girava em torno do tema de sempre: vôo e Força Aérea.

Lá pelas tantas, num daqueles vazios que ocorrem em qualquer conversa, um desses colegas perguntou-me:

– Patto, como está seu problema com o Parkinson?

De imediato, todos ficaram muito sérios.

– Está sob controle – observei.

– Não há possibilidade de uma cirurgia?

– Há três tipos de cirurgia. A que vem apresentando melhores resultados é uma em que se coloca um eletrodo no centro do cérebro e, com um controle remoto, se aplica, de vez em quando, uma pequena descarga elétrica que estimula a “substância negra” a produzir dopamina. O problema são os efeitos colaterais.

– Que efeitos colaterais?

– Como o comando é realizado por controle remoto, pode ocorrer que um portão de garagem que esteja sendo acionado nas redondezas cause interferência, fazendo com que automaticamente a pessoa levante a perna esquerda e mije.



Hurricane

Sobrevoávamos as Antilhas de regresso para o Brasil, e as condições meteorológicas eram razoáveis. Sabíamos, porém, que estavam piores mais ao Sul. Foi quando o Controle Miami nos informou que havia um hurricane na rota e perguntou o que desejávamos fazer. Como nenhum de nós sabia o que era hurricane, somente respondemos “Roger” (entendido). O controlador repetiu a mesma mensagem e, novamente, respondemos “Roger”. Então, o controlador nos desviou da rota por algumas dezenas de milhas e encerrou o assunto.

Ao pousarmos, fomos ver quem era esse tal de hurricane.

Era furacão!



Cavalo-de-pau com Ministro a Bordo

Pilotei HS durante seis anos. É um jato executivo para cinco passageiros, utilizado, na FAB, para transporte de autoridades, normalmente ministros de Estado.

Em uma dessas missões, fui a Congonhas, São Paulo, transportando um ministro com sua esposa.

Ao chegarmos em Congonhas, chovia muito e tivemos que aguardar. Éramos os primeiros da “prateleira”. Apesar de voarmos baixo, onde o consumo de combustível é maior, não estávamos preocupados porque havia visibilidade. O controlador só queria aguardar um pouco o amainar da chuva. A pista, no entanto, era restrita, em comprimento, para o HS. Uma vez reduzido o motor para pousar, não era possível arremeter e, além do mais, já era noite, o que sempre dificulta um pouco. Mas nada além da tensão normal que antecede um pouso.

Passados alguns minutos, fomos liberados para pousar.

Entrei na final, realizando uma descida com o auxílio dos instrumentos e, na curta final, reduzi um pouco o motor para tocar logo no início da cabeceira. Ainda chovia e o controlador nos alertou para o excesso de água na pista.

– Isso é que é pouso suave! – comentei.

Mas, logo em seguida, quando fui frear, nada! O avião deslizava, o freio não pegava. Gritei para o 2P:

– O freio não pega!

De imediato, o 2P tentou seu freio e nada. O avião estava em hidroplanagem. Com uma velocidade de toque em torno de duzentos e cinqüenta quilômetros por hora, o avião não desacelerava o suficiente.

Sabíamos que, num dado momento, ele sairia da hidroplanagem. Mas sairia a tempo de pararmos a aeronave?

O final da pista se aproximava rapidamente. Aos poucos, o avião começou, aparentemente, a desviar para a esquerda, o que aumentava ainda mais os riscos, pois, a partir de um determinado ponto, havia um barranco também desse lado. Foi quando, instintivamente, ou talvez pelo condicionamento no vôo em aeronaves menores e mais lentas, pisei no freio esquerdo. O freio pegou e a aeronave girou violentamente para a esquerda, dando um cavalo-de-pau. Com o giro, a asa direita subiu, juntamente com o nariz da aeronave, a ponto de sumirem as luzes da cidade. Quando terminou o giro, o 2P já havia desligado os motores, a bateria – tudo.

Disse, então, a ele:

– Fale com a torre que eu vou ver como está o pessoal lá atrás.

E fui falar com o mecânico, com o ministro e sua esposa.

Todos estavam bem. Havia somente o susto.

Nesse ínterim, o 2P, ao ligar o rádio, ouviu a Torre autorizar o pouso de um Boeing. De imediato, ele entrou na freqüência e mandou o Boeing arremeter, pois estávamos na pista.

Havíamos parado a trezentos metros do final da pista e estávamos alinhados no centro dela – o que significava que havíamos deslizado de lado.



Mímica

Em uma das viagens do Grupo de Transporte Especial onde eu voava, havia três taifeiros que não falavam nem entendiam inglês. E a viagem era para os Estados Unidos. Ao chegarem ao hotel, o comandante da aeronave os orientou para seguirem um funcionário que os levaria até o quarto.

Lá chegando, constataram que só havia duas camas.

Um deles comentou:

– Só há duas camas. Como vamos pedir mais uma?

E o mais extrovertido respondeu:

– Deixa comigo.

E deitou no chão, cruzou as mãos no peito e começou a roncar.

E o funcionário saiu em disparada.

Levantando-se, o extrovertido comentou:

– Que tal? É a mímica. Linguagem internacional. Todo mundo entende ...

Mas foi interrompido pela entrada do mesmo funcionário... acompanhado por outros dois trazendo uma padiola...



O Piano da Vizinha

Bem diz a etiqueta que elevador não é lugar de conversar.

Havia chamado o elevador para subir ao meu apartamento, em Brasília, e aguardei a chegada de minha vizinha. Cumprimentamo-nos, entramos e começamos a subir.

Então ela me perguntou:

– O piano está incomodando muito? (Ela havia comprado um piano havia alguns meses).

– Não – respondi. Aliás, a senhora está de parabéns. Nesses poucos meses, melhorou muito, está tocando muito
melhor...

Ao que ela retrucou:

– Mas eu sou professora de piano há vinte anos!!...



Enólogo

Em Brasília, era moda conversar sobre vinhos, comprar vinhos, estocar vinhos, beber vinhos.

Decidi “entrar no clima”.

Comprei um livro sobre vinhos e o estudei detalhadamente, como se fosse para realizar uma prova. Com esses conhecimentos, discorria sobre o assunto por duas horas seguidas.

E a noticia se espalhou. Fiquei com fama de ser um grande conhecedor de vinhos, quando, em verdade, eu era um enólogo de um livro só.



Passeando de Bonde

Passeávamos, eu e a Laura, pela Áustria, quando resolvemos andar de bonde. Como eu gosto de mexer nas máquinas em geral, fui tentar comprar os passes em uma delas. As instruções, no entanto, estavam em alemão, e eu não entendo nada de alemão. Mesmo assim, coloquei uma moeda, apertei alguns botões e consegui um passe. Repeti a seqüência e consegui outro passe. E fomos andar de bonde. Como não havia lugar para depositar os passes e ninguém apareceu para pedi-los, ficamos com eles.

Dias após, já na Suíça, na casa de uma prima, contei-lhe o episódio, e ela pediu para ver os passes.

Ao vê-los, começou a rir.

Havíamos comprado e utilizado passes de cachorro.



De Férias na Praia

Alugamos uma casa na praia, no litoral de Santa Catarina, e para lá fomos, com amigos e parentes, para curtir uns dias de férias.

O relacionamento era ótimo, e o clima descontraído, como é normal nessas ocasiões.

Foi então que, plagiando uma historia antiga, resolvi descontrair ainda mais.

Fui ao comércio, comprei uma barra de chocolate crocante, escondi em nosso quarto e aguardei a noite chegar e avançar.

Quando todos estavam dormindo, levantei em silêncio, levando a barra de chocolate e fui a um dos banheiros da casa. Desembrulhei o chocolate, amassei bem com as mãos e lambuzei o vaso, a tampa do vaso, as paredes ...

Lavei as mãos e voltei para a cama.

Acordei cedo, acordei a Laura e ficamos aguardando.

Logo começou o zumzumzum.

Aguardamos mais um pouco e saímos do quarto.

O circo estava armado.

– Venham ver – dizia um.

– É um absurdo – comentava outro.

– Mas o que houve? – perguntei.

– Veja você mesmo o que fizeram no banheiro.

– Olhe! Está todo lambuzado de cocô.

– Isso é coisa de homem – dizia uma.

– Alguém entrou aqui – dizia outro.

E eu, fingindo surpresa:

– Com os diabos! – e, passando um dedo e levando-o à boca – E é merda mesmo!...

Uma amiga nossa quase vomitou.



Trote Infantil

Em outra ocasião, passeávamos, Laura e eu, na praia de Porto de Galinhas.

Próximo ao final da praia, havia várias crianças, todas olhando para dentro de um laguinho.

Ficamos curiosos e fomos para lá.

Ao nos aproximarmos, ouvimos os garotos dizendo:

– Sete, sete, sete.

E, ao chegarmos, passaram a dizer:

– Nove, nove, nove.



Furto no Ônibus

Uma senhora da terceira idade, conhecida nossa, entrou em um ônibus lotado. Como não havia assento vago e ninguém lhe oferecera lugar para sentar, permaneceu em pé. E o ônibus foi enchendo mais. Já estava apertado, e as pessoas se esbarravam. Em um certo momento, um senhor que estava ao seu lado deu-lhe um forte esbarrão. Nesse instante, olhando para o braço, deu-se conta de que seu relógio havia sumido. Não teve dúvidas. Apanhou uma escova que trazia na bolsa, pressionou o cabo contra as costelas do referido senhor e disse-lhe:

– Sem movimentos bruscos, ponha o relógio na minha bolsa.

E assim foi feito.

– Agora, puxe a cordinha e saia do ônibus, sem olhar para trás.

E novamente foi obedecida.

Ao chegar em casa, ainda nervosa, contou para suas filhas o ocorrido, ao que uma das filhas retrucou:

– Mas, mãe. Você esqueceu o relógio aqui em casa!



Parkinson

O Parkinson, de que sou portador, costuma trazer uma depressão associada que me incomodava, e os antidepressivos que me foram receitados tinham efeitos colaterais indesejáveis e não resolviam o problema.

Foi, então, que solicitei à minha mulher, que é psicóloga, que me ensinasse uma forma comportamental para lidar com a depressão.

O primeiro procedimento que ela me passou foi para identificar e evitar o que denominei de “Coitadinho de Mim” – que consiste em uma atitude de autopiedade. Essa atitude pode ser evitada simplesmente adotando-se a prática de se interessar por outras pessoas, tentando ajudá-las.

Outro procedimento é o da “Inofensividade” – que consiste em não pensar mal de ninguém. Todavia, como isso é muito difícil, inicie não falando mal de ninguém.

Passei a praticar esses procedimentos em minha convivência com as pessoas, e obtive excelentes resultados: não tenho mais episódios ou postura depressiva e meu relacionamento com as pessoas melhorou em termos de tolerância, aceitação e compreensão. Deixei de cultivar a raiva e o ódio, minha conversa ficou mais agradável, minhas tensões físicas e emocionais diminuíram, passei a conviver melhor com a doença e – o mais importante – o Parkinson até mesmo parece ter regredido. Não apresentei mais nenhum episódio off, diminuíram os movimentos involuntários, e as distonias1 quase desapareceram.

É bem verdade que tenho um excelente médico e que estou muito bem-medicado. Mas até meu médico é de opinião de que minha postura e meu modo de viver atuais têm contribuído significativamente para uma boa qualidade de vida.

1 Contração muscular involuntária. No meu caso, ocorria nos pés, nos quadris e no ombro, dificultando o deslocamento.



Uruguai



Ozuma

Passei dois anos no Uruguai, como Adido Aeronáutico àquele país.

Dentro da programação das Forças Armadas para os adidos militares estrangeiros, havia, às vezes, viagens pelo interior do Uruguai, algumas delas realizadas de avião.

Em uma dessas ocasiões, estávamos acomodados dentro de um Casa (avião de transporte de fabricação espanhola), enquanto esse taxiava em direção à pista em uso. Íamos visitar um quartel do Exército.

Sentado um pouco à minha frente, encontrava-se o coronel Ozuma, adido naval paraguaio. Parecia preocupado. E todos sabiam que detestava voar. Tinha lá seus receios.

Levantei-me de meu lugar e fui conversar com ele:

– Ozuma, notei que você está preocupado. Se for em função do vôo, não há motivos para isso. Sabidamente, esse é um ótimo avião, e a sua estatística de performance é excelente. Imagine que a incidência de acidentes graves é de um para cada dez mil horas de vôo.

– Não diga, Patto. Gostei de saber disso.

– É. Mas tem um detalhe. Este avião no qual estamos está completando agora as dez mil horas de vôo sem nenhum acidente grave!



Pilotando Helicóptero

Atendi ao telefone, na Adidância1. Era o comandante da base aérea em Montevideu.

Após os cumprimentos, disse-me que estavam com um problema e perguntou-me se eu poderia ir até lá.

Nem mesmo perguntei do que se tratava. Avisei que já estava indo e saí. Lá chegando, dirigi-me para a área operacional, conforme o combinado, e qual não foi minha surpresa: lá estavam o comandante da base, seu assistente com um macacão de vôo nas mãos, o tenente-coronel que era o oficial de ligação com os adidos estrangeiros, um helicóptero UH-1H pronto para a partida, um capitão instrutor e um mecânico de bordo.

– Vista o macacão e vá pilotar – disse-me o comandante.

Ainda surpreso, vesti o macacão e fui voar. O oficial de ligação foi conosco, como passageiro. Dei a partida e decolei após autorizado pela Torre. Só então comentei:

– Nada mal para quem está a dezessete anos sem pilotar, hein?

Ao que o oficial de ligação retrucou:

– Dá para pousar para eu descer?

Pilotei por uma hora e quarenta minutos. Fiz decolagem e pouso normais, decolagem e pouso corridos, pouso com o sistema hidráulico desligado, auto-rotação com pouso, área restrita...

Creio que esse vôo inesperado tenha ocorrido em função das histórias que eu contava sobre meus vôos na Amazônia...